Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa*
Pedro Martins
De todos os oradores deste colóquio, só eu não cheguei a conviver com Rafael Monteiro. No entanto, não deixei de o conhecer pessoalmente, numa das poucas vezes em que o encontrei na redacção do jornal local em que ele colaborou nos últimos anos da sua vida.
Curiosamente, e tanto quanto julgo saber, serei também o único dos seis oradores desta tarde que travou uma polémica com Rafael na imprensa regional, precisamente nas páginas do tal jornal, um mensário em cujas instalações exíguas nos viríamos depois a cruzar de modo episódico.
Naquela altura, eu tinha apenas dezassete anos. Tinha também algumas ideias feitas. Porventura, demasiadas. Um dia, ao ler o tal jornal, não gostei que R. M. – era assim que ele assinava – elogiasse a RTP por esta haver suspendido um programa da autoria de Herman José, chamado Humor de Perdição, em que o humorista maltratava as principais figuras da História de Portugal. Escrevi então uma carta indignada ao director do mensário, que a publicou. Rafael respondeu-me ferozmente e eu repliquei-lhe com contundência. A coisa ficou por ali; e os ânimos ficaram exaltados.
Quando, mais tarde, travámos conhecimento pessoal, na redacção do dito jornal, não lhe notei qualquer animosidade. Verifiquei, então, com certo regozijo, que não me guardara rancor, o que, aliás, era recíproco. Creio que o armistício ficou selado tacitamente quando ele me cravou um ou dois cigarros.
Relembro, aqui e agora, o que então sucedeu, com o exclusivo propósito de demonstrar que este homem, que era um lutador e um combatente, tinha a nobreza dos melhores guerreiros.
Alguns dos seus combates eram verdadeiros conflitos íntimos. A este propósito, será oportuno contar um outro episódio passado com Rafael. Dois ou três anos depois daquela polémica, eu editava, com dois amigos (o António Ladeira e o Nuno Sanchez Lacasta), a página cultural daquele jornal. Essa rubrica, graças a uma ideia brilhante do Ladeira, tinha um título excêntrico, contrastante e pleno de subentendidos: chamava-se “Incêndio na Fábrica de Extintores”. Ao cabo do segundo aniversário da página, resolvemos comemorar a sua criação, e decidimos entrevistar Rafael, mas ele declinou o convite. Mudámos a agulha e o António Ladeira foi a Almada entrevistar o escritor Romeu Correia, que era casado com uma sesimbrense, Almerinda Correia, e havia escrito maravilhosamente sobre Sesimbra, num romance intitulado Trapo Azul. Quando o Rafael viu a entrevista publicada no jornal, terá exclamado qualquer coisa como isto: “Pois! Não me entrevistaram a mim, para irem entrevistar este comunista!”.
Já algumas pessoas me disseram que esta atitude inconstante e, por isso mesmo, desconcertante era própria de Rafael. Ao que julgo saber, ele até admirava o escritor almadense, com quem partilhou certos pontos de vista na defesa dos pescadores contra os malefícios do arrasto, mas o anticomunismo persistente que o caracterizava, aliado a uma pontinha de ciúme, desembocou nesta confissão de desalento e desconsolo. Eu julgo que Rafael queria e não queria ser entrevistado; e que, por isso, terá travado, no seu íntimo, uma batalha tremenda consigo mesmo.
Fora isto, o seu anticomunismo, público e notório, aliado a uma admiração incondicional, que sempre manteve, pela figura de Salazar, valeu-lhe o rótulo apressado e injusto de fascista. Ora, eu estou em crer que este é um bom ponto de partida para se avaliar em que medida Rafael Monteiro foi um homem da filosofia portuguesa.
(continua)
* Comunicação apresentada ao colóquio Rafael Monteiro, Sesimbra e a Filosofia Portuguesa, realizado na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 22 de Setembro de 2007.