sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Bellum sine bello


Carta a Pedro Sinde

António Cândido Franco

Évora, 20 de Novembro de 2007


Caríssimo Pedro Sinde

Peço-te antes de mais desculpa da demora desta carta, que há muito te devia em resposta a outra tua de 7 de Julho. Encurtando razões, digo-te que a necessidade e a urgência de te responder nunca se ausentou do meu espírito e é com muito gosto que estou tentando responder às tuas perplexidades.

Começo pelo surrealismo. O surrealismo tem de ser encarado a partir da sua etimologia e a partir das suas manifestações. A etimologia das palavras não nos pode servir nuns casos e noutros não; em todos, ela ilumina o sentido da palavra, que pode estar mais ou menos obscurecido pelo tratamento humano mas nunca de todo ausente. No caso estamos de acordo que a etimologia de surrealismo nada tem a ver com a ideia do que está por baixo do real, mas antes com o que está para ou por cima. É esse inegavelmente o sentido original do surrealismo e é esse que se encontra nas suas obras mais representativas e importantes. Caso a tradução portuguesa da palavra não te agrade, podes escolher o termo sobre-realismo, que foi usado por muitos em portuguesa língua, entre eles por Agostinho da Silva.

Quanto à confusão entre ‘su’ e ‘sub’, e até em língua francesa entre o ‘sur’ e o ‘sous’, quer dizer, a confusão entre ‘surrealismo’ e ‘sub-realismo’, não a sinto como dizes. Se eu aceitasse tal confusão, teria de aceitar também que ela se estabelece, pela proximidade fonética, entre ‘sob’ e ‘sobre’. Quer dizer, não veria diferença entre palavras como ‘sobrenatural’ e ‘subnatural’. Ora não é isso que acontece no meu caso e creio que no teu também. Sei distinguir, quer no plano do sentido, quer no plano dos sons, entre ‘sob’ e ‘sobre’, como sei distinguir em língua francesa entre ‘sur’ e ‘sous’ e no caso português entre ‘surrealismo’ e ‘sub-realismo’. A distinção entre os fonemas, de quaisquer fonemas, é subtil, de pormenor, mas existe. Será que tu confundes entre trevo e treva? Entre nada e nata? Não creio. É por isso que o argumento do meu ponto de vista é forçado. Tu queres teimosamente ter razão e para isso recorres a essa confusão, fácil de fazer mas difícil de aceitar. Nestas coisas não vale ser teimoso e por isso te peço que reconheças o valor inato e original que a palavra tem, quer na portuguesa língua, quer na francesa.

Por tudo o que vai implicado no que acabo de dizer, a descida aos infernos de que falo a propósito do surrealismo deve ser encarada como uma procura dos arcanos e não como um simples entretenimento turístico à procura do abjecto, com viagem de ida e volta. Ela concorda com tudo o que dizes na tua carta sobre o assunto. Se dei a entender outra coisa, a culpa não é do surrealismo mas apenas da minha expressão insuficiente, que não conseguiu estar à altura das ideias de que falava.

Quanto às relações da Filosofia Portuguesa e do surrealismo já percebeste pelas palavras do Ruy Ventura que aquilo que dizes acerca da primeira podes dizê-lo do segundo. O surrealismo nunca pretendeu ser um movimento, mas a causa mesma do movimento, para usar as tuas palavras. Basta pensares num exemplo tão comezinho como este. Natália Correia quando pretendeu fazer uma Antologia do surrealismo português não foi a Cesariny, a António Maria Lisboa ou aos possíveis precursores destes; recuou aos primeiros momentos literários portugueses da Idade Média. O surrealismo está fora do tempo; pertence à eternidade. Estamos na verdade a falar do que está acima do real. Trata-se dum caso muito sério. O surrealismo não envelhece; é uma ideia que anima desde e para sempre a vida.

Por fim, vejamos o que chamas o ataque de Mário Cesariny à Filosofia Portuguesa. Não sei se trata dum ataque ou tão-só duma incompreensão ou até, mais simples, dum equívoco. Seja como for, também essas palavras me incomodaram quando, há muitos anos, pela primeira vez as li. No prefácio que escrevi para as poesias completas de Mário Beirão, e publicado pela Imprensa Nacional em 1996, abordo a questão de raspão. Assim como assim, o que aí digo a propósito do autor de O Último Lusíada pode ser alargado às relações de Cesariny com a Filosofia Portuguesa.

Uma coisa é certa, não me esqueço que uma ponte liga duas margens em ambos os sentidos. Tanto me incomodam as incompreensões para com o surrealismo e as suas obras como as injustiças para com a Filosofia Portuguesa e os seus autores. Recebe o abraço amigo de quem muito te estima e te escuta e lê sempre com o maior prazer e atenção

A. Cândido Franco

1 comentário:

Anónimo disse...

Quando se fala da má-vontade, digamos assim, que Cesariny tinha em relação à Filosofia Portuguesa, não devemos esquecer um aspecto: que certos senhores ou certos sectores se serviam de tal coisa ou movimento para distorcerem pensamentos/pensadores como por exemplo Pessoa, para os jungirem aos seus propósitos anti-universalistas, retrógrados e autoritários, o que está nos antípodas do surrealismo.
Era isso que repugnava a Cesariny, assim como me repugna a mim e a outros tão de boa-fé como eu.
O que é que, por exemplo, Agostinho da Silva terá a ver com fulanos que se arrogam de seus compagnons ou discípulos? Apenas buscam uma caução para serem "tão dos fundilhos de Portugal que não são de lado nenhum", como dizia MC.
E o resto é conversa.