domingo, 30 de setembro de 2007

Pensando à bolina (6)

Brevíssimo diálogo desconcertante

Pedro Sinde

Encontro um amigo na rua e saúdo-o naquele estado habitual em que se saúdam as pessoas umas às outras, quer dizer, em que é o hábito social a falar por nós, em que perguntamos sem que esperemos uma resposta verdadeira.

- Como estás? Correu-te bem o dia?

Olhou-me com ar pensativo. Estranhei a demora na resposta; não é normal, perante uma banal pergunta de cortesia, o nosso interlocutor ficar mesmo a pensar nela. Ele levou a sério a pergunta. Ao fim de algum tempo, que mais parecia não ter fim, respondeu, fitando-me profundamente:

- Sinde, meu caro, passou mais um dia, foi milagre atrás de milagre e, no entanto, eu vivi-o como se fosse natural estar vivo...

- Como assim? - perguntei, ainda absorto no meio da estupefacção.

- Repara, o sol ergueu-se no céu e veio iluminar a terra; eu despertei como que da morte, pois deitei-me de noite e só me levantei com o sol a erguer-se e não me lembro de nada entre o deitar e o levantar; andei, senti, pensei, pude olhar o mundo e tudo isto sem sentir que estou vivo. Não é espantosa a estupidez a que se pode chegar?

- Pois - balbuciei, turbado e desconcertado. - Até amanhã, Dinis! - preferi despedir-me, antes que eu mesmo começasse a sentir que estou vivo.

domingo, 23 de setembro de 2007

Pretextos (3)

Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa*

Pedro Martins

De todos os oradores deste colóquio, só eu não cheguei a conviver com Rafael Monteiro. No entanto, não deixei de o conhecer pessoalmente, numa das poucas vezes em que o encontrei na redacção do jornal local em que ele colaborou nos últimos anos da sua vida.

Curiosamente, e tanto quanto julgo saber, serei também o único dos seis oradores desta tarde que travou uma polémica com Rafael na imprensa regional, precisamente nas páginas do tal jornal, um mensário em cujas instalações exíguas nos viríamos depois a cruzar de modo episódico.

Naquela altura, eu tinha apenas dezassete anos. Tinha também algumas ideias feitas. Porventura, demasiadas. Um dia, ao ler o tal jornal, não gostei que R. M. – era assim que ele assinava – elogiasse a RTP por esta haver suspendido um programa da autoria de Herman José, chamado Humor de Perdição, em que o humorista maltratava as principais figuras da História de Portugal. Escrevi então uma carta indignada ao director do mensário, que a publicou. Rafael respondeu-me ferozmente e eu repliquei-lhe com contundência. A coisa ficou por ali; e os ânimos ficaram exaltados.

Quando, mais tarde, travámos conhecimento pessoal, na redacção do dito jornal, não lhe notei qualquer animosidade. Verifiquei, então, com certo regozijo, que não me guardara rancor, o que, aliás, era recíproco. Creio que o armistício ficou selado tacitamente quando ele me cravou um ou dois cigarros.

Relembro, aqui e agora, o que então sucedeu, com o exclusivo propósito de demonstrar que este homem, que era um lutador e um combatente, tinha a nobreza dos melhores guerreiros.

Alguns dos seus combates eram verdadeiros conflitos íntimos. A este propósito, será oportuno contar um outro episódio passado com Rafael. Dois ou três anos depois daquela polémica, eu editava, com dois amigos (o António Ladeira e o Nuno Sanchez Lacasta), a página cultural daquele jornal. Essa rubrica, graças a uma ideia brilhante do Ladeira, tinha um título excêntrico, contrastante e pleno de subentendidos: chamava-se “Incêndio na Fábrica de Extintores”. Ao cabo do segundo aniversário da página, resolvemos comemorar a sua criação, e decidimos entrevistar Rafael, mas ele declinou o convite. Mudámos a agulha e o António Ladeira foi a Almada entrevistar o escritor Romeu Correia, que era casado com uma sesimbrense, Almerinda Correia, e havia escrito maravilhosamente sobre Sesimbra, num romance intitulado Trapo Azul. Quando o Rafael viu a entrevista publicada no jornal, terá exclamado qualquer coisa como isto: “Pois! Não me entrevistaram a mim, para irem entrevistar este comunista!”.

Já algumas pessoas me disseram que esta atitude inconstante e, por isso mesmo, desconcertante era própria de Rafael. Ao que julgo saber, ele até admirava o escritor almadense, com quem partilhou certos pontos de vista na defesa dos pescadores contra os malefícios do arrasto, mas o anticomunismo persistente que o caracterizava, aliado a uma pontinha de ciúme, desembocou nesta confissão de desalento e desconsolo. Eu julgo que Rafael queria e não queria ser entrevistado; e que, por isso, terá travado, no seu íntimo, uma batalha tremenda consigo mesmo.

Fora isto, o seu anticomunismo, público e notório, aliado a uma admiração incondicional, que sempre manteve, pela figura de Salazar, valeu-lhe o rótulo apressado e injusto de fascista. Ora, eu estou em crer que este é um bom ponto de partida para se avaliar em que medida Rafael Monteiro foi um homem da filosofia portuguesa.

(continua)

* Comunicação apresentada ao colóquio Rafael Monteiro, Sesimbra e a Filosofia Portuguesa, realizado na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 22 de Setembro de 2007.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Pensando à bolina (5)

Experiências com animais

Pedro Sinde

Imaginemos os dois, o leitor e eu, que em vez de serem os homens a fazer experiências com animais, eram os animais a fazer experiências com os homens. Imaginemos que uma espécie de animais resolvera caçar homens, reproduzi-los (reproduzir-nos!) para realizar experiências "científicas". Tudo isto, é claro, porque a sua espécie estava ameaçada por uma estranha doença e necessitavam de encontrar a cura. Não podemos dizer que seria por razões humanitárias, mas por razões animalitárias.
O que faria o homem quando reparasse que os seus estavam a desaparecer enigmaticamente e descobrisse que os animais os tinham enjaulado, que lhes davam injecções com líquidos que lhes causavam uma dor atroz, que lhes implantavam orelhas nas costas e braços na cabeça?

O animal é visto como uma "coisa" ao serviço do homem. E o que é curioso é que aqueles que fazem estas experiências atrozes com os animais são exactamente os mesmos que defendem que os homens são apenas animais entre animais, par inter pares. Se o homem é apenas um igual entre iguais com o animal, então que direito o assiste nesse infligir de sofrimento inimaginável, invisível, mas bem existente? Os horrores de um laboratório científico... uma câmara de tortura!

Não há dúvida de que falta à nossa ciência uma orientação metafísica. Acalento a esperança secreta de que, no fundo, no fundo, eles não sabem o que fazem; possa assim alguém perdoar-lhes.