quinta-feira, 19 de julho de 2007

Evocação

Excerto de uma carta de João Rêgo († 4.7.2007) a um amigo

“Mentalmente mantenho-me activo escrevendo, escutando e tentando interpretar sentimentos e sofrimentos. Percebi este verão o alcance de alguns avisos de Sampaio Bruno, nas últimas páginas de A Ideia de Deus:

Se o mundo não existe para que o homem o saiba, também não existe para que o homem o goze, filosofar, filosofar sempre é que é o destino humano…

Percebi que, enquanto viver, não estou autorizado a descansar. Deter-se a alma nalguma satisfação ou nalguma felicidade é abrir a porta a monstros. Até aqui não acreditava que quanto mais luminosa a ideia entrevista tanto maior o perigo da queda, quando o movimento desaparece. A vida do espírito é deveras só movimento, movimento exigente. Quem esquece isto corre sérios riscos de ficar paralisado por muito tempo. Creio que é esta também uma das mensagens de Álvaro Ribeiro no prefácio de A Literatura de José Régio. Não tinha compreendido até agora por que motivo Álvaro se lamenta da insistência do anjo…”

João Rêgo

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Pensando à bolina (2)

O desenho que a vida faz
Pedro Sinde

A nossa vida é um acto contínuo; mas só vista de longe, de um ponto remoto a que dificilmente conseguimos chegar, precisamente porque se trata da nossa vida.

Quando olhamos a vida de uma pessoa no passado ou lemos a sua biografia, podemos ver esse acto único, contínuo. Mas, em relação à nossa, isso é mais difícil, porque estamos tão perto dela que nos aparece como um pontilhado de um quadro impressionista: se visto de perto, não se distingue a imagem lá figurada, mas apenas um conjunto de traços fugazes.
Para percebermos o sentido da nossa vida, para vermos a figura que cada gesto nosso vai desenhando subtil ou grosseiramente na tela, temos de encontrar esse ponto de distanciamento (nem longe em demasia, nem excessivamente perto) que nos permita, vendo o que já está desenhado, antecipar a direcção do traço presente. E, no fim, um anjo ou um demónio será a figura final.
Estamos sempre a tempo de mudar a figura toda, porque cada gesto do presente actua sobre todo o desenho do passado. Assim, um bandido transforma a sua vida passada, que mostrava a figura disforme de um monstro, numa figura belíssima de anjo, no momento exacto em que, de uma vez por todas, se arrepende.

sábado, 7 de julho de 2007

Bellum sine bello

Carta a António Cândido Franco

Pedro Sinde

Meu caro Cândido Franco

Escrevo-te a propósito de uma carta que dirigiste ao António Telmo; não cometo nenhuma inconfidência pois tu mesmo tornaste a carta pública nos Teoremas de Filosofia (n.º 8). Assim, venho eu mesmo tornar pública esta carta que te dirijo.

Não se trata de uma resposta à tua carta, só o António Telmo o poderia fazer e optou discretamente por deixar cair ali o assunto, tendo até inserido o seu texto (A Cabra, Teoremas de Filosofia, n.º 7), que originou a polémica, se assim me posso expressar, juntamente com a tua carta no seu último livro (Congeminações de um neopitagórico). Discretamente, nesse livro, creio ter dado uma resposta à tua carta, ao inserir debaixo do mesmo capítulo (Bellum sine bello), para lá dos textos referidos, dele e teu, uma entrevista à revista brasileira Encontro, brilhantemente conduzida pelo poeta Ângelo Monteiro (esta entrevista foi publicada nos Teoremas, n.º 3). Lá chegarei.

Esta carta não procura responder à tua, verás que mais do que responder, ela procura perguntar. Estamos já em 2007 e a tua carta é de 2003, poderás por aqui verificar a natureza do meu intuito ao escrever-te agora, quatro anos passados.

Para quem não conheça o texto de António Telmo e a tua carta, creio que pode ser útil dizer que a polémica se centra em três pontos que tu mesmo referes sintetizando; tudo tendo por origem um álbum editado pela Assírio em que se reúnem desenhos de Pascoaes:

1. De que modo se podem interpretar os desenhos de Pascoaes?
2. O que é o surrealismo?
3. Que relação existe entre Mário Cesariny e a filosofia portuguesa?

Estes três pontos ligam-se subtilmente numa só questão: que relação existe entre o surrealismo em Portugal e a filosofia portuguesa?

1. Sobre a interpretação dos desenhos de Pascoaes

Pascoaes fez a sua obra como homem da palavra e não pela imagem. Por esta razão não há que dar demasiada importância a um aspecto que ele nunca quis tornar público. Em todo o caso, se queremos conhecer bem o seu pensamento, podemos também contar com esse aspecto. Aquilo que António Telmo procurou fazer foi mostrar que os desenhos “nocturnos” de Pascoaes devem ser vistos à luz, quer dizer, devem ser postos ao lado da sua obra luminosa; deixados sozinhos poderiam ser tomados erradamente como um aspecto tenebroso. É o mesmo, aliás, que acontece com o seu livro Duplo Passeio, é um passeio por dois lados do ser, que não são a luz e as trevas, mas o dia e a noite, o que é muito diferente; poderíamos dizer ainda que se trata da ausência e da presença, se quisermos estabelecer esta relação não já com duas forças cósmicas, mas com duas forças antropológicas ou anímicas. A noite não é a treva; podemos dizer que se estabelece entre a noite e o dia a mesma relação que entre o silêncio e o verbo; já a treva seria como que a palavra às avessas, quer dizer, o ruído.

2a. Surrealismo e a sua etimologia

A argumentação que usas para refutar a interpretação do António Telmo a propósito do termo “surrealismo” impressionou-me. Procuraste levar tudo para o campo da etimologia, como se o professor de francês que foi António Telmo pudesse ignorar a diferença entre sous e sur. Não, não se trata de etimologia; trata-se da eficácia da palavra. Quando digo “surrealismo”, a ideia que se me impõe, malgré moi, é a de algo que está por baixo do real. Se os fonemas são na sua forma a expressão do significado, da ideia, então aquele “su” aparece-nos necessariamente como o que está por baixo, o que subjaz. Não serve argumentar que essa não é a etimologia e que esta é “sobre” (sur), o que importa é o modo como é apreendida a palavra; e a isto não escapa mesmo o erudito, pois também a ele, no uso corrente, se impõe essa ideia necessariamente. A única forma de escapar seria a de adoptar sempre a forma sobre-realismo ou supra-realismo. Aí sim, claramente, não poderia haver confusão. Mas como nestas coisas da língua nunca há coincidências, é necessário tirar consequências da escolha da tradução de surréalisme por surrealismo. É o que faz o António Telmo.

De resto, mesmo o francês não está imune a esta confusão, pois, oralmente aquele “su”é ouvido como “sous” e se é ouvido, é interpretado. Será um acaso infeliz, dir-me-ás, que no francês sejam tão semelhantes o sous e o sur. Bom, mas que culpa temos nós que os franceses confundam o que está em cima com o que está em baixo? O génio da sua língua lá saberá o motivo por que deixou assim essa possibilidade, talvez fecunda, de confusão, talvez até haja virtualidades desconhecidas nisto que nos aparece como uma falta de clareza, sobretudo num povo que tão cartesianamente crê saber distinguir o preto do branco. Será. Certo é que a palavra ouvida soa sempre como su-réalisme, porque o r de sur se funde com o r de réalisme, deixando suspenso e destacado o su, que em português soa a sub e em francês a sous. Certo, certo, é que o génio da língua portuguesa não se presta a confusões e dá-nos para o sous o termo sob ou sub e para o sur o termo sobre. O português muito bem distingue entre o que está em cima e o que está em baixo.

2b. Surrealismo e abjeccionismo

Não sei se a distinção teórica entre uma e outra correntes será muito eficaz quando se pensa no comportamento. Mesmo que deixemos, como devemos deixar, o puritanismo de lado, algumas das descrições que o próprio Cesariny faz do seu comportamento, parecem situá-lo mais do lado dos abjeccionistas do que do lado dos outros, dos surrealistas propriamente ditos.

A propósito da descida aos infernos, que a ninguém desejo, poderíamos depois conversar demoradamente. É difícil de pensar no que pode estar significado nessa expressão; todavia, não creio que isso deva ser entendido ou confundido com o “abjecto” e isso parece estar significado nesta distinção: os abjeccionistas são os que ficam lá, no abjecto; os surrealistas são os que descem lá, mas depois ascendem.

A poesia clássica que se refere a este tema não deixa qualquer margem para que o concebamos por esse modo. Quer dizer, não se trata de experimentar o abjecto nem o mal. O inferno só o é quando nasce na mitologia cristã enquanto tal; antes disso é o reino dos espectros, dos mortos. Também aqui não se deveria confundir a noite com a treva.

A este propósito recorres à Arte Poética do António Telmo. Há aqui, porém, uma questão essencial que não permite esse recurso. Não vou entrar sequer no plano da argumentação, mas apenas lembrar-te que é o próprio António Telmo que, naquela entrevista, já referida, republicada nos Teoremas (n.º 3), afirma o seguinte: “A minha Arte Poética vale pelo último capítulo que foi escrito para a sua segunda edição”; concordaremos os dois que o juízo é severo demais, no entanto, é o próprio autor quem o faz e referindo-se explicitamente à doutrina da “descida aos infernos” que ali pôs! Esclarecendo o seu pensamento actual, explica que a descida aos infernos é, na realidade, a descida ao mundo das origens: é Eneias que consulta o pai, Ulisses que fala com a mãe, Fausto que desce até ao lugar onde estão as mães, Jesus que de lá retira os patriarcas. Com isto, António Telmo situa a reflexão sobre a descida num plano completamente diferente do surrealismo.

A certa altura na tua carta interrogas o António Telmo, a propósito da descida aos infernos, nestes termos: “Disto mesmo nos fala o seu livro de estreia, Arte Poética. Lembra-se, António Telmo?” E continuas: “Se bem compreendi a sua arte poética, não pode haver maturidade humana vital sem a experiência perigosa que os heróis clássicos faziam do mundo inferior (…).” Parecendo responder, avant-la-lettre, à tua carta, a resposta surge, pronta, na entrevista com dois anos de antecedência: “Mas alguma vez eu disse que não se pudesse ser grande poeta sem a experiência da descida aos infernos? Valha-nos Deus!”

Deduzo, naturalmente, que não leste a entrevista, por qualquer razão circunstancial, se tivesses tido oportunidade de a ler, estou certo, terias evitado aquele momento, tão entristecedor, em que recomendas a leitura dos livros de Breton ao António Telmo.

3. A relação entre a filosofia portuguesa e o surrealismo

Uma coisa deveras me tem intrigado no que dizes sobre a relação entre a filosofia portuguesa e o surrealismo em Portugal: colocas-te numa posição de mediador, sentindo que aqueles dois movimentos, desencontrados no tempo, incapazes de se compreender mutuamente, por esta ou aquela razão, se deviam encontrar agora. Não vou procurar, porque não é o lugar e porque não tenho competência para tal, ver até que ponto um e outro são compatíveis. Uma diferença, porém, se me apresenta logo à partida. A filosofia portuguesa não é um movimento, ao contrário do surrealismo que, esse sim, foi um movimento. Vejo-te aqui como um D. Pedro a fazer rainha, depois de morta, o surrealismo. É um belo gesto, no melhor do D. Quixote; só com quixotes isto hoje pode ir! Todos os da filosofia portuguesa são, contigo, quixotes!

Não podemos, todavia, situar o surrealismo no mesmo plano da filosofia portuguesa. A filosofia portuguesa, tal como a viu Álvaro Ribeiro, existe latente desde a origem da pátria e talvez mesmo antes; foi-se explicitando em monumentos arquitectónicos, literários, na língua, na história; e é por isso que enquanto houver um português haverá filosofia portuguesa, latente mas presente. Se hoje vivemos um período de ocultação, isso não será assim sempre. O trabalho está quase todo por fazer e é preciso continuar a estudar Portugal, olhar para trás para com mais nitidez percebermos a direcção do caminho que temos pela frente. É dramático que, sendo portugueses, nos ignoremos a tal ponto que necessitemos de uma arte de ser português!

É por isso que a filosofia portuguesa não pode morrer, ela não é um movimento, ela é a causa do nosso movimento.

Ela estará latente, sim, mas só até àquela altura em que a filosofia for já plenamente operativa, quando sair dos livros que agora são a sua necessária arca de Noé e que a protegem até ao fim deste dilúvio que por nós, avassalador, passa (até quando?).

A pergunta que gostava de te fazer, para encerrar esta carta, que já vai longa, é a seguinte: uma vez que te colocas como intermediário entre a filosofia portuguesa e o surrealismo, movimento francês presente em Portugal, porque é que te incomodou tanto o texto de António Telmo sobre Cesariny e o surrealismo e parece ter incomodado tão pouco o ataque injusto desferido por Cesariny à filosofia portuguesa? É que vi-te reagir prontamente ao primeiro e nunca vi – ponho a hipótese de desconhecer algum texto teu… – qualquer reacção tua ao segundo. Ocorre-me uma imagem: o Quixote verá não só gigantes nos moinhos, mas também moinhos nos gigantes? Outra imagem poderia ser esta: uma ponte liga duas margens, mas em ambos os sentidos.

São estas as perplexidades que tenho sentido e que não queria, por lealdade à nossa amizade, deixar de te as expor. Se o faço assim, em público, é porque sigo aquele lema de Sampaio Bruno que diz: “Guerra às ideias, paz aos homens”, seguro de que entre nós a paz permanecerá no abraço amigo que do norte ao sul te envio,

Pedro Sinde

Pensando à bolina (1)

A um homem simples de Santo Tirso que todos os dias ia ao templo

Pedro Sinde

Todos os dias Deus chama por ti. E sempre à mesma hora tu estás disponível, livre. Dizes, então, que “sim, Amen”.

Aquiescente, livre e obediente, todos os dias àquela hora, cabeça baixa, passo lento mas certo, respondes ao teu chamamento.

Pobre diabo, assim exclama quem te vê de longe passar; mas na verdade és um pobre de Cristo.

Vejo-te agora, de chapéu e gabardina, ambos surrados, ambos cinzentos, quase invisíveis de puídos. Levas a cabeça baixa, como se olhando pudesses ofender alguém. E lá vais, livre e obediente, nunca faltando ao teu compromisso.

Como sabes tu que Deus te chama todos os dias à mesma hora? Nunca o ouviste. Nunca leste nenhum livro – nem sabes ler letras. E, no entanto, todos os dias dizes que “sim, Amen”.

Em que corda profunda Deus te toca? Com que misteriosa ressonância respondes tu no alaúde da tua alma ao acorde que Deus tange em ti?

Ó meu Deus, o que os teus olhos viram! O que sofreste! A fome por que passaste… Não houve um dia, Verão ou Inverno, que a tua pele não estalasse mais um pouco ou mais um pouco mirrasse. Os teus onze irmãos morreram já, uns com pneumonia, outros à fome ou ao frio.

Carregaste toda a tua vida como um fardo pesado. E, ainda assim, que corda profunda Deus toca em ti? Com que misteriosa ressonância respondes tu no alaúde da tua alma a esse acorde? O que viu e sabe a tua alma de Deus para todos os dias à mesma hora, do mesmo modo, livre e obediente, responder? Que abismos insondáveis guardas no regaço da tua alma?

Não precisas de argumentos, sabes mais do que os doutores da teologia.

Ah! Que misteriosa íntima união se dá entre ti e Deus… de tal modo que ignoras que ele, o Senhor do Universo, Sonhador deste nosso mundo, Chama Viva do Pensamento, Criador dos nossos destinos, o Rei, o Único, te chama; e mesmo assim, sem saberes sabendo, respondes que “sim, Amen”.

Santo Tirso, 21 de Dezembro de 1998

Escaparate (1)

Congeminações de um neo-pitagórico, de António Telmo
Al-Barzakh, 2006

Alexandre Teixeira Mendes

Sob o signo de Pitágoras

Inaugurando as edições Al-Barzakh , apareceu agora, numa edição limitada de 50 exemplares, o livro de António Telmo “Congeminações de um neopitagórico”. Fica-se com a impressão, ao ler estas páginas, de que a abordagem dos diversos textos exige à primeira vista o articular da “prima philosophia” (assimilável a uma hermenêutica) para se apreender a instância da letra – os traços diferenciais e constituintes duma obra - onde se interpela sobretudo a razão poética, razão criadora. Na realidade, os “scripta” deste autor exigem uma atenção à linguagem audaciosa - enquanto expressão “iniciática” - e o assegurar do seu itinerário para cobrir o domínio que desejamos falar.

Da patriosofia

A relevância deste autor da “sophia”- a filo-sofia - que re-pensou e interpretou o “logos” e “ontos” português - é geralmente lembrada em termos de sua capacidade de oferecer uma leitura da “História Secreta de Portugal” (Editorial Vega, Lisboa, 1977), articulando “Razão” e “Mistério”. O problema que subjaz a esta discussão - a nossa “autognose” - é antigo, e seu tema foi repetido em diversas variações sobretudo pela doutrinação periodística do “57” (na essencialização do movimento da “Renascença Portuguesa”). Tratou-se aí de um grupo estabelecido e definido - o “Movimento da Cultura Portuguesa” - que re-colocou em discussão, nos anos 50-60, a problemática dos fundamentos ônticos e lógicos da Filosofia Portuguesa. Entendida assim a questão surge de uma compreensão da “lógica dos arcanos” e, portanto, da “patriosofia” (presente nomeadamente na obra de António Quadros ou Dalila Pereira da Costa). Já houve quem apresentasse António Telmo como “parte duma raríssima linhagem de poetas e pensadores obscuros que têm procurado desenvolver uma tradição órfica primordial, emque o canto e a palavra aparecem como a salvação do mundo” (António Cândido Franco, “O Filho de Orfeu (Gramática Secreta da Língua Portuguesa)” in António Telmo e as Gerações Novas, p. 77). Os seus escritos e a sua obra está in via.

Os mecanismos da iniciação

A filosofia, segundo António Telmo, exige iniciação. Pois bem! Não há interpretação sem iniciação. O termo “iniciação”- que se presta, por vezes, a equívocos - , deriva do latim initium, significa “começo” e também “entrada”. À luz destas considerações compreender-se-á melhor o termo “irmão”, adelphos, que é utilizado, mesmo em Elêusis, para os que se iniciam juntos. A iniciação - no itinerário do pensamento de António Telmo – começou assim, em definitivo, a partir do magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho (revelou-se de modo luminoso na sua aventura no Brasil com Agostinho da Silva). O nosso autor - conhecido pela sua formação clássica e filológica - é hoje o exemplo típico da “fusão de horizontes” que extrai seu próprio poder da tradição cultural e esotérica de Portugal - e cuja base filosófica ou temática se move, em sentido estrito, no âmbito heterodoxo, inicialmente numa amálgama da tradição unânime, que se torna, num segundo estágio, aproximação ao substracto metafísico do hermetismo (tendo em conta o longo processo conhecido genericamente como “iniciação”). Nos seus primeiros escritos e posteriores justifica-se essa tradição portuguesa - de um logos mais poético-profético que noético - que Álvaro Ribeiro identificou com a Santa Kabbalah.

Kabbalah, sufismo e joaquimismo

António Telmo situa-se, na realidade, em face de três enfoques: a kabbalah, o sufismo e o cristianismo dos espirituais da Idade Média (joaquimismo). Repetidas vezes se assinalou a sabedoria mística - esotérica e secreta - expressa através dos tempos. É mais que sabido que o cabalista ambiciona captar o que anda escondido: nesse horizonte das visões e das revelações tende à purificação pessoal. Aliás, o mundo do tempo surge, aos olhos do cabalista, como exílio. Convém não esquecer que Israel está em exílio, a Criação de Deus está em exílio, cada alma, vestida de um corpo terrestre que o separa do Um, está em exílio. Requer-se uma via de iniciação e de sabedoria. É suficiente que, de uma ou outra maneira, busquemos a re-integração (o retorno à origem)? A kabbalah - enquanto tradição oculta ou esotérica dos Hebreus - seguiu seu curso porque chegamos a levar em conta o grau em que os processos psicológicos estão presos pelos temas da ambiguidade da linguagem criadora de mundos. Importa porém tentar aqui uma aproximação ao sufismo: a espiritualidade ou mística da religião do Islão subversiva para o legalismo e o literalismo. De facto, trata-se de um termo que foi relacionado à palavra grega sophia que significa sabedoria, e à palavra árabe saf, que significa pureza, sendo que esta última também se refere às vestes puras, de lã, usadas por alguns sufis. Para o sufismo o protótipo do verdadeiro crente é o viandante. Os sufis são gente no caminho e o sufismo é declaração de amor. Daí também ter tentado a seu modo a activação plena de Deus no homem. Caracterizar o sufismo como realização da unidade de Deus leva, naturalmente, a falar da substancial unidade de todas as religiões e da confiança no futuro da humanidade. É preciso ressaltar que os seus ensinamentos são antiquíssimos e referem-se ao despertar (na circunvizinhança da ideia de conversão que tem por modelo o texto do Qu’ran). O fenómeno a que chamamos dervixes, ou seja, monges viandantes - literalmente aqueles que rezam (ou procuram) na soleira (entre os mundos) - é uma das manifestações da irmandade que provém de Rûmî. Por sua vez, o evangelismo apregoado pelo abade cirterciense Joaquim de Fiori, no século XII, como se sabe, foi baptizado como a “Nova Idade do Espírito”. A sua síntese “dialéctica” e “precursora” de Hegel toma contacto com a realização ou cumprimento de palavras e promessas: o “pléroma” do Novo Testamento. Joaquim de Fiori, não obstante a sua filiação à tradição patrística e agostiniana, aproxima-se dos dissidentes e hereges ao serviço do dinamismo do Espírito. Os argumentos do joaquimismo e do “Evangelho Eterno” – para justificar novas “idades” ou novas “eras” – foram retomados contemporaneamente por Agostinho da Silva.

“Versos Dourados”

Impõe-se, portanto, uma noção preliminar para explicar o título deste livro de António Telmo: a doutrina pitagórica e a tradição numerológica-hermética. Pitágoras mais não fez que dar forma ao dogma da perfeição da esfera que atravessou os séculos. Lembra-nos, em mais de um pormenor, que a esfera inclui em si todas as figuras possíveis. A sua teorização não abrangeu em vão a astronomia explicativa e geométrica em um contexto particular, historicamente circunscrito. O entrelaçamento de duas formas de espírito, que geralmente se excluem -, o espírito científico e o espírito místico -, passam por este pensador natural de Samos (527 antes da era comum). Pitágoras não era somente o taumaturgo, mas o mistagogo sagaz onde, por assim dizer, ganha relevo o génio matemático cujos raros extractos e fragmentos chegaram até nós. Mas entre todas as fontes de Pitágoras, merecem menção especial os “Versos Dourados” ou “Versos de Ouro” (de que conhecemos a versão de José Blanc de Portugal). Parece-nos útil assinalar, porém, o precursor da ciência dos números e figuras que - na opinião avalizada de Proclo – transformou a geometria em um ensinamento liberal. Poderíamos ainda fazer alusão a os mysteria, adentro dos termos-chave do conhecimento teórico como via da salvação (soteria). Como já observamos, é-nos completamente impossível apresentar na sua totalidade os aspectos da religião astral do mundo antigo - a visão da imortalidade celeste das almas - e do pitagorismo. Vistas as coisas o mais rigorosamente possível, o pitagorismo, segundo Louis Rougier, forneceu um quadro maravilhosamente apropriado às religiões de mistério e às economias da salvação que desbordaram do Oriente sobre o mundo mediterrâneo depois da conquista de Alexandre (La Religion Astrale dês Pythagoriciens). O pitagorismo moderno tem pelo menos uma coisa boa: suscitar a re-descoberta da chamada geometria esférica. Trata-se da filiação a uma tradição que nos remete a um corpus metafísico próximo do antigo “saber imutável”.

Da tradição hermética

A “Ars Magna”, também chamada “Grande Obra”, é o objectivo de todo “filho de Hermes”. Ora, a arte de interpretação remete-nos à figura de Hermes, mensageiro divino, o qual cabe a tarefa de traduzir a vontade dos deuses para a língua humana. Agora se torna, talvez, mais claro qual é a herança em que se inscreve António Telmo - descendente em linha directa dos “Cabalistas da Noite” - e cujo reportório, por exemplo, nos remete ao Sefer HaZohar, que se traduz como “O Livro do Esplendor”. Torna-se crucial distinguir aqui a escritura e a arquitectura de uma obra a partir de um centro: a “Escola Portuense”. Isto me parece ainda mais importante hoje, quando se torna imperioso acentuar – com vista a ulteriores reflexões – que nela se privilegiavam duas distinções: a distinção entre o ensino escrito e o ensino oral, por um lado; a distinção entre escritos exotéricos e escritos esotéricos, de outro. O autor de "Arte Poética”, superando e reassumindo o espírito visionário e messiânico de Bruno, tem vindo a re-assumir, por assim dizer, o pensar de Platão e Aristóteles. Estamos aqui, na realidade, em face de uma reflexão que encontra o seu significado no facto de assimilar as três tradições abrahámicas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, também chamadas de “tradições do Livro”. Este conjunto de ensaios vem esclarecer os termos dos problemas referentes a um questionamento (para usar a terminologia de Henry Corbin) de “espaços visionários e “geografias imaginais”. Não discutiremos aqui as interpretações apresentadas, o que nos afastaria do nosso propósito; contentar-nos-emos em ressaltar a admirável “Carta ao Pedro Sinde um dos doze”, um dos clássicos “Diálogos de Thomé e Nathan” e as anotações “Em torno d`Os Lusíadas e de Camões” ou “À volta de Platão” (Crátilo ou o Mistério da Palavra”) que alcançam a sua originalidade.

Originalmente publicado nos blogues Ladina e Incomunidade.

A sombra de Eurídice (4)

Nevoeiro

Fernando Pessoa

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fatuo encerra.

Ninguem sabe que coisa quer.
Ninguem conhece que alma tem.
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ancia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…

É a Hora!

Valete, Fratres.
[10-12-1928]

Provas de contacto (3)

O Deus de Paulo

Teixeira de Pascoaes


O mundo foi da Poesia, nos primeiros séculos da nossa era. Repetir-se-á o milagre? Voltará o deus dos poetas contra os sábios, que só acreditam na matéria, e com ela fabricam explosivos, gases asfixiantes, máquinas pavorosas? Nesta orgia industrial moderna, paródia em ferro e vapor, da orgia pagã, o homem está morto ou isolado do seu espírito. Existe, mas não vive. Existe a duzentos quilómetros à hora, mas com a vida parada, dentro dele. Vida inerte numa existência delirante. Seduzido pelo ruído e movimento, as duas faces desta civilização americana ou neo-neroniana, integrou-se num sistema mecânico industrial, e é simplesmente uma engrenagem. O ideal da ciência é a morte absoluta; a morte da alma e a do corpo: ateísmo e milinite. O homem, desviado do seu destino, que é tornar-se consciência universal, perante o Criador, mente à sua própria natureza e perde a razão de ser. Daí, a paralisia moral em que ele jaz e a velocidade que o desvaira, e leva para o túmulo. Pretende eliminar o espaço e o tempo, converter-se numa entidade fictícia, simples imagem abstracta, perpendicular a um solo vertiginoso. Pretende evaporar-se. Eis a grande sensação moderna, depois do sentimento antigo. Mas confiemos no espírito humano.

Esta civilização americana depende de materiais esgotáveis ou em quantidade limitada. A fábrica, esse templo moderno, há-de ser destruída, como o templo de Artemisa, em Éfeso, e o de Vénus, em Pafos. Templo quer dizer túmulo, casa dos mortos, que os mortos foram os primeiros deuses. Foram eles que dirigiram, para além do mundo, a atenção dos vivos. Destruída a fábrica pagã, teremos a igreja de Cristo, a confraria dos irmãos, o convívio universal e amoroso.

Confiemos no Deus de Paulo.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A sombra de Eurídice (3)

um soneto de Luís de Camões

No mundo, poucos anos e cansados
vivi, cheios de vil miséria dura;
foi-me tão cedo a luz do dia escura
que não vi cinco lustros acabados.

Corri terras e mares apartados,
buscando à vida algum remédio ou cura;
mas aquilo que, enfim, não quer Ventura,
não o alcançam trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e cara
pátria minha Alenquer; mas ar corrupto,
que neste meu terreno vaso tinha,

me fez manjar de peixes em ti, bruto
mar, que bates na Abássia fera e avara,
tão longe da ditosa pátria minha!

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Provas de contacto (2)

Deus

Sampaio (Bruno)

No princípio era a Perfeição, o espírito homogéneo e puro. No segundo momento, mercê do efeito dum mistério, temos o espírito diminuído e a seu par a diferença que se tornou heterogénea, isto é o mundo. No terceiro momento, reintegrar-se-á o espírito puro, pela absorção final de todo o heterogéneo. Assim, três são os instantes supremos do crescimento. Um: é o espírito homogéneo e puro, que foi e há-de voltar a ser. Eis o ponto de partida e eis o ponto de chegada. Outro: é o espírito puro mas diminuído actualmente, pelo destaque separativo do Universo. Enfim, o outro ainda: é esse Universo, que aspira a regressar ao homogéneo inicial.