segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Pensando à bolina (10)

Da não existência da filosofia portuguesa

Pedro Sinde

Não há filosofia portuguesa. É um dado evidente. É quase um facto. Basta olhar para os autores da filosofia portuguesa para ver que ela não existe. Vejamos.

Sampaio Bruno é um gnóstico que trata as ideias platónicas como Aristóteles estudaria uma planta (não nos fala ele na eclosão da ideia na alma do génio?); e, como se não bastasse, acredita que a humanidade inteira será um dia o messias, o D. Sebastião esperado.
Leonardo Coimbra rejeita todos os sistemas de filosofia como formas de "cousismo", isto é, como momentos de paragem do movimento e propõe uma filosofia que é a sua própria negação: uma filosofia do movimento, em que cada nova forma supera a anterior. Deste modo recusa implicitamente a existência de sistemas, a não ser como momentos provisórios.
Álvaro Ribeiro propõe uma filosofia que é uma teologia, um caminho para Deus, um caminho de santidade; os que só vêem à superfície chamam-lhe, para o denegrir, neo-aristotélico, não vêem que isso é apenas a capa sob a qual se esconde um pensamento tremendamente revolucionário.
José Marinho é um místico de uma lucidez extrema, mas de uma lucidez que tem pudor em mostrar-se como tal e, por isso, nunca edificaria um sistema.
Agostinho da Silva, enfim, foi o que foi, ninguém sabe o que foi e, por isso, chamam-lhe comunista, monárquico, anarquista ou franciscano, budista, taoísta. Tudo isso cabia na sua alma imensa, mas ele mesmo não era nada disso; acreditava no quinto império e entendia que os portugueses tinham por missão mostrá-lo ao mundo.

É por isso que há dois tipos de inimigos da filosofia portuguesa: alguns dos que dizem que ela existe e todos os que dizem que ela não existe. Os primeiros tentam encontrar um sistema e teses que dêem unidade à diversidade magnífica, como se dissessem que todas as plantas têm tronco; os segundos comparam-na com o pensamento sistemático alemão ou francês e não encontram nenhum sistema de filosofia português; e têm razão, porque eles chamam filosofia precisamente ao que vêem na Alemanha, na França, em Itália e, agora muito em voga, nos Estados Unidos.
A verdade é que a filosofia portuguesa não tem nada a ver com isso e é desta perspectiva que podemos dizer que ela não existe, pois, graças a Deus, não há um sistema de filosofia portuguesa.

Agora vou dizer, só na aparência, o contrário do que disse: há filosofia portuguesa, é evidentíssimo que há, mas ela não pode ser pensada a partir dos moldes habituais. A nossa filosofia é aquela que, como diz quem chamou a atenção para ela
– Álvaro Ribeiro –, está escondida na nossa literatura, na nossa arte, na nossa arquitectura, na nossa paisagem, no nosso mar, na nossa sabedoria popular e até nos nossos filósofos. Poderia ter-lhe chamado pensamento português ou tradição portuguesa, mas com isso não teria concitado a atenção à volta do tema; teria sido uma intervenção mais ou menos inócua. Ao chamar-lhe filosofia portuguesa conseguiu irritar a academia e isso foi bom para que as águas se agitassem.

A filosofia portuguesa é uma floresta muito variada, todos os seus autores têm a lucidez de saber que não podem edificar um sistema. A filosofia portuguesa é a mesma dos nossos descobridores: partem nas caravelas do pensamento e vão vendo o que lhes aparece nessa aventura; estão em movimento e só desse modo vão descobrindo os brasis, as índias e parece que até as austrálias da alma; num momento aproximam-se daqui e noutro dali, mas sabem que não são nem daqui nem dali. Não é à toa que os portugueses saíram de Portugal assim que o conquistaram. O português é um viajante, um peregrino e, por isso, quando pensa o mundo, isto é, quando filosofa, é como se navegasse.

Assusta-me ver a filosofia portuguesa nas universidades. Tenho a esperança de que, apesar disso, nunca cheguem a inventar um sistema de filosofia portuguesa, porque enquanto não houver sistema haverá perguntas, quando houver sistema haverá respostas. Prefiro a beleza do perguntar à estultice do responder, quer dizer, do julgar que se sabe ao ponto de ter respostas; porque, como os nossos nobres navegadores, estamos a procurar e, assim que descobrimos o que procurávamos, logo partimos para outro lugar. É preferível a cegueira de achar que não existe filosofia portuguesa, ao acreditar que ela existe e querer enfiá-la num corpete, retirar-lhe aquilo que fundamentalmente a caracteriza: o amor da liberdade de pensar e até de se contradizer, se for caso disso.

5 comentários:

CMondim disse...

Viva a filosofia portuguesa!

Anónimo disse...

Quer o Pedro Sinde dizer que a filosofia portuguesa não existe enquanto acto pensante português (não em português), pensamento versus sentimento, vive-versa, ou os dois misteriosamente entranhados, porque a filosofia, ela própria, nunca se constituiu sistema entre nós?
No que toca à filosofia portuguesa não existir - Deus assim a mantenha! - nas universidades (proliferam a alemã, a francesa e, agora, a americana), também o mesmo se passa com a poesia. Miguel Torga dizia que os universitários, quando apanham um poeta/escritor a seu jeito, são autênticos urubus...
Raros poetas, sem formação universitária, têm tido o direito de dizer o que quer que seja nas cátedras. E quantos poetas populares já foram às universidades, mesmo às ditas “Novas”?

Eduardo Aroso

Sinde disse...

Caro Eduardo Aroso

Trata-se apenas disto: quando uma filosofia passa a sistema, cousifica, enrijece, cristaliza.
Para se manter viva, creio, deve ser como um organismo. Os organismos crescem, amadurecem, aprendem. Julgo que a ideia aristotélica de enteléquia explica bem isto: a enteléquia é o fim a que se dirige o ser e, enquanto não for atingido esse "fim" almejado, ele estará sempre no caminho, a caminho.
Se fixarmos teses para a filosofia portuguesa (e com base em que autores? Sampaio Bruno? Leonardo Coimbra? Álvaro Ribeiro?...)estaremos a fixá-la, a fazer com que perca a "flexibilidade" para continuar à procura do que ainda não tem.
Veja o que aconteceu com os "sistemas" de Kant ou Hegel; a inflexibilidade que os caracteriza partiu-os.
Há árvores que enraizam em pedras: a flexibilidade da planta ganha à dureza da pedra.

Pedro Sinde

Anónimo disse...

A lição da flexibilidade vemo-la na própria Natureza: uma árvore quando carregada de neve (por isso mais pesada), se não balançasse um pouco, fustigada pelo vento, cairia; ou, na engenharia humana, o caso, por exemplo, da Torre Eiffel que, se não oscilasse um bom bocado lá no cimo, acabaria por desmoronar-se.
Se por filosofia se entende tão-só o caminho em que o caminhante apenas “toma o caminho” de pensadores precedentes (sem iludir o facto de que há Tradição em Portugal), como se tivéssemos que fazer essencialmente o que eles não puderam realizar, por não serem fisicamente eternos neste mundo (naturalmente), então eu não só não creio que haja filosofia (liberdade) portuguesa, como penso - sendo dessa maneira - ser desejável não haver, e muito menos ensinada nas universidades, vendidas definitivamente ao marxismo desde o Maio de 68 em França, isto é, onde a liberdade de pensamento, podendo existir, fica fechada na arrecadação.
Doutro modo, não enjeito a ideia de que possa haver a continuidade de teses, quase diria que do mesmo modo como hoje fazemos (re) leituras de autores consagrados, desde que isso – como diz, no caso da filosofia, e muito bem - não cousifique e enrijeça a liberdade do acto pensante. A História está cheia de exemplos, e actualmente podemos ver nas nossas instituições o que se passa: criaram um estatuto e seguiram-no; agora há formalismo em vez de vida.
No caso português da ÁGUIA, o interessante é que num certo ambiente heterodoxo, como na diversidade singular do convívio de poetas, filósofos, artistas plásticos, doutrinadores, historiadores e outros, em que vive (voa...) a ÁGUIA, dir-se-ia que há que ter conta a poesia como algo que, numa totalidade vivente, reflecte essa tendência para a nossa flexibilidade (palavra-chave na alma portuguesa) ou não fosse o nosso Povo de «brandos costumes».

Um abraço
Eduardo Aroso

http://fieis-do-amor.blogspot.com/ disse...

Um dia, sem saber como, veio-nos à pena as seguintes frases:

A filosofia, não é mais que a imagem do que é. Assim, facilmente se depreenderá que não fará qualquer sentido referirmos-nos à “imagem do que é”, sem “o que é”. No mesmo raciocínio nos parece claro, que “o que é” sem uma relação formal e heróica com a sua imagem, já não se poderia chamar “Ser”, mas sim a sua própria negação, o que repugna.

Quanto ao filósofo, inequivocamente, este será aquele que deseja a filosofia. Obviamente, não deseja a filosofia para a possuir, a menos que seja para efeitos saturninos de celebração da ilusão; o filósofo deseja a filosofia, para sentir o sublime prazer de lhe fazer companhia.

Se a imagem tem palavra; se a palavra filha da hermenêutica tem Pátria e, se Aquino tiver razão quando afirma que ninguém ama a Deus sem um corpo, ou seja, não existe palavra divina sem palavra corpórea porque caso contrário não seria possível estabelecer a união, o que resultaria na própria negação de Ser. Não compreendemos muito bem, a não existência da filosofia portuguesa.

É certo, que preferimos-lhes chamar Filosofia Lusitana, mas o facto pelo qual o fazemos, como diz o povo: -"trás água no bico".


Saudações