quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Pensando à bolina (4)

O Deus da nossa infância

Pedro Sinde

A ideia infantil que formámos de Deus é, simultaneamente, um obstáculo e uma ajuda. É uma ajuda porque o pensamos como a fonte da bondade, da beleza e da verdade; e isto é causa de esperança. Acalenta-nos a ideia de que, havendo injustiça no mundo, há, no entanto, uma justiça transcendente, uma justiça que transferimos para o outro mundo. Tudo isto é bom, descansa-nos.
Porém, o pensador, o filósofo, deve olhar para a ideia de Deus com coragem, deve superar a imagem infantil que se entranhou na sua alma em criança. Para o filósofo, essa ideia é um obstáculo que não o deixa pensar livremente, que não o deixa pensar seriamente.
A parábola do filho pródigo mostra-nos nitidamente estas duas possibilidades: o filho que fica em casa é aquele que conserva a ideia infantil de Deus; o filho que sai de casa, percorre o mundo e é recebido, para escândalo do outro irmão, com uma festa, assim que retorna a casa, é aquele que não se contentou com a imagem recebida em criança. Estes são o caminho da religião e o caminho da filosofia.
O filósofo andará sozinho, será rejeitado, caluniado, será visto como um louco, mas será livre e procurará verdadeiramente. Errará, certamente, várias vezes, mas o ímpeto da demanda é mais forte do que ele; quem sabe se não é o próprio Deus a procurar-se a si mesmo no filósofo?

A maravilha do mundo, tal como nos aparece vertida na natureza, é certamente um pensamento divino - de que estranho acaso poderia ter saído tanta magnificência? -, mas nessa maravilha esconde-se o horror da morte e do sofrimento dos inocentes: é o veado perseguido pelo leão ou a criança que sofre horrores que nós nem imaginamos.
Ao filósofo cabe o duro papel de pensar o mundo como um todo, sem corpetes, sem palas, num esforço heróico e tremendo. Quem alguma vez passou pela experiência de pensar verdadeiramente o mal não poderá mais fingir que o mundo é apenas fruto da harmonia. Vemos nele essa harmonia, manifestada de um modo insuperável na natureza, mas um vento gelado, caótico, tende a infiltrar-se nela a todo o tempo.
É fácil ver a causa do bem em Deus, difícil é pensar a causa do mal.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Escaparate (2)


Barros Basto - A Miragem Marrana,
de Alexandre Teixeira Mendes

Pedro Sinde

Este livro revela-nos Barros Basto e a questão marrana. Escrito num estilo que mostra e esconde, parece jogar com o leitor, levando-o gradualmente a procurar perceber por si próprio o pensamento do autor. Não é um livro objectivo, na medida em que é um livro com alma, um livro apaixonado e apaixonante. Só os sem alma, podem transformar o sujeito do seu estudo em objecto. Alexandre Teixeira Mendes, pelo contrário, transforma o objecto do seu estudo em sujeito; é assim que Barros Basto, o apóstolo dos marranos, nos aparece vivo, contraditório, verdadeiro, o herói que lutou pelo resgate dos marranos, isto é, dos judeus que durante quatro séculos se esconderam, passando e recriando, de geração para geração, uma tradição que não podiam exprimir à luz do dia; a noite era o seu dia!

Vemos Barros Basto, no horizonte, de pé e em luta contra dois gigantes – a igreja católica e a "igreja" judaica –, um David e dois Golias; vemo-lo a dar o toque para reunir os que se encontravam dispersos. Alexandre Teixeira Mendes não está fora a olhar Barros Basto; acompanha-o na juventude, na conversão, na guerra, na organização do misterioso Instituto Oryamita, na Obra de Resgate. E nós, seus leitores, acompanhamo-lo por uma viagem inesquecível a um dos pontos mais importantes da alma do ser português e que só Sampaio Bruno e António Telmo estudaram, com a mesma audácia e liberdade que agora encontramos no autor deste livro.

Lançamento

Barros Basto A Miragem Marrana,

de Alexandre Teixeira Mendes


No âmbito das comemorações da Jornada Europeia da Cultura Judaica, que, entre nós, se realizam este ano no Porto, em 2 de Setembro, é lançado o livro Barros Basto – A Miragem Marrana, da autoria de Alexandre Teixeira Mendes. O lançamento desta obra, prefaciada por António Telmo, terá lugar será na Sinagoga Mekor Haim, na Rua Guerra Junqueiro, 304, e a sua apresentação será feita por Pedro Sinde.

Ao longo do dia, estão previstas diversas actividades, das quais se destacam uma visita guiada ao Porto Judaico, de manhã, seguida de almoço histórico em Miragaia. À tarde, a partir das 17 horas, já na Sinagoga do Porto, e precedendo o lançamento, estará patente uma exposição sobre a vida e a obra do Capitão Arthur Barros Basto e será exibido um filme sobre as actividades judaicas no Norte de Portugal.

O programa da Jornada Europeia pode ser consultado no blogue da Ladina.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Pensando à bolina (3)

Sinais da natureza: o trevo e a estrela
Pedro Sinde

O trevo é uma expressão natural do número três. Como as suas três folhas estão unidas no centro, ele manifesta a unidade na trindade. É curioso, no entanto, que o povo entenda que o trevo se realiza plenamente apenas no número quatro. Um trevo de quatro folhas é uma anomalia, é uma excepção; mas é nessa excepção que o povo cristaliza a ideia de boa sorte.
Esconde-se aqui a ideia de que fora da norma, do normal, é que há-de estar o excepcional; aí é que o sobrenatural se revela plenamente.
O trevo, de algum modo, realiza-se no número quatro, mas isto não significa que todos os trevos deviam ter quatro folhas, pois isso faria deles outra coisa que não um trevo. O que me parece que está aqui significado é que um trevo de quatro folhas é, para o mundo dos trevos, o que um santo é para o mundo dos homens. Nem todos os homens se tornam santos, mas todos têm o sinal da santidade para que tendem.
A ideia de que dá boa sorte encontrar casualmente um trevo de quatro folhas revela a crença de que esse trevo é dotado de um poder especial, poder esse que, ao aparecer a uma determinada pessoa, assinala ou revela esse mesmo poder nela.
É curioso o simbolismo da estrela cadente, pois uma estrela que cai pareceria poder exprimir um sinal nefasto. O povo, porém, atribui a essa queda a ideia de descida; uma estrela cadente é, pois, uma luz celeste que desce à terra. Quem a vê deve formular um desejo; essa descida é um sinal de que a pessoa que a viu participa da luz que desceu.
Num e noutro caso trata-se sempre de, sem procurar, encontrar. Todavia, não procurar não é sinónimo de estar desatento. Uma pessoa desatenta passaria pelo trevo sem o ver, ainda que ele estivesse,
isolado, à frente dos seus olhos. Trata-se de uma atenção livre, disponível para o mundo, mas sem avidez. Quem tem o hábito de circular por livrarias ou bibliotecas sabe que é com essa disposição da alma que se encontra, inesperadamente, o livro que se procurava, sem saber que se procurava. É, em suma, a mesma atitude que devemos ter a cada dia: estar livremente atentos, para ver o que vem; no horizonte de cada dia qualquer coisa pode acontecer: a morte, a iluminação ou até ambas.
Para encontrarmos o trevo de quatro folhas é preciso olhar a terra; para ver a estrela cadente é preciso contemplar o céu. O homem da cidade só vê, quando repara neles, o betão no chão e as luzes das ruas a encobrir o céu. Não deve ser por acaso que no Corão se diz que, no fim dos tempos, nem uma cidade ficará de pé.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Um novo blogue

António Quadros
É o nome de um blogue sobre o pensador de Portugal, Razão e Mistério, consagrado à evocação da sua vida e à divulgação e ao estudo da sua obra. António M. Ferro é o autor. Pode ser lido aqui.

(fotografia: www.antonioquadros.blogspot.com)

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Bellum sine bello

Carta a Pedro Sinde

António Cândido Franco

Pedro Sinde, querido Amigo:

Estou a ler a tua carta com o cuidado que a tua pessoa me merece. A resposta virá mais tarde, em Setembro, quando regressar de férias.
Assim como assim, quero desde já agradecer-te a disponibilidade que puseste em me escrever. É um gosto e uma atenção que espero estimar e merecer.
Será que leste a pequena homenagem a Mário Cesariny que publiquei na revista A Ideia (nº 63), a propósito do seu falecimento? É um testemunho pessoal, nada mais, mas onde se fala de Pascoaes. Serve, para já, de entrada às palavras da minha resposta futura.
Isto se o Pedro Martins tiver a paciência e a generosidade de me reproduzir e aturar o texto no blog.
Abraço muito amigo do teu

António Cândido
Évora, 24 de Julho de 2007
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Homenagem a Mário Cesariny
António Cândido Franco

A primeira vez que falei com Mário Cesariny foi na Mãe-de-Água, às Amoreiras, em Lisboa, no ano de 1990, quando a Assírio & Alvim lançou A Phala especial, dedicada aos cem anos da poesia portuguesa (1888-1988). Recordo um dia de chuva, enevoado e ventoso; quando cheguei, o espaço estava repleto de uma pequena e ruidosa multidão. O Hermínio deu-me um exemplar do volume, onde eu participava com um texto sobre Teixeira de Pascoaes. Folheei-o e daí a nada, à minha frente, falando com um desconhecido, estava o Mário Cesariny, magro e seco.
Avistara-o uma única vez, uns anos antes, em 1984 ou em 1985, em Entre-Campos, de cachecol e boné enfiado na cabeça, na festa dos dez anos da revista A Ideia. Eu estava com o Ruy Cinatti e os dois reconheceram-se quando se cruzaram à saída, tirando os bonés e fazendo um ao outro um sorriso infantil. Foi momento comovente que não mais esquecerei. Eu acompanhara o Ruy e o Mário fora decerto o Miguel Serras Pereira que o levara ou que lhe dera a notícia da reunião pois recordo que recitou no espectáculo dois ou três dos seus poemas.
Agora, anos depois, surgia ali, mesmo ao meu lado, em cabelo branco, com os traços rijos de um plebeu aristocrata. Havia um cheiro intenso a ceruma verde e como ele estivesse a fumar pensei que era ele que estava de charro na mão.
– Ora o Cesariny não faz por menos a festa – entretive comigo. – Vir para o meio do maralhal fumar erva mal seca. Só ele. É um pivete que chega ao Jardim da Estrela.
Anos mais tarde, confessou-me que nunca tocara num cigarro de liamba ou em qualquer outra droga e que durante a sua longa vida não bebera mais do que três ou quatro cervejas. O único excesso fora uma aspirina com uma cerveja, nos tempos do Gelo, nos anos cinquenta, e que quase rebentara com ele.
– Agora imagine o que teria sido a minha vida, com a paixão que me caracteriza, se eu tivesse experimentado qualquer droga. Nunca mais a largava. Era o inferno – rematou.
No fim do lançamento, quando a multidão começava a escoar, reparei que ele se deixara ficar para trás, folheando um livro que lhe haviam dado. Atrevi-me a abordá-lo. Apresentei-me a medo. Ele foi de uma gentileza inexcedível, mostrando-se atencioso e muito atento às minhas palavras. Falámos sobre Teixeira de Pascoaes. Eu conhecia a antologia que ele fizera em 1972 da obra do poeta do Marão, as palavras firmes do seu prefácio, considerando Pascoaes superior a Pessoa. Reafirmou-me os juízos, apimentando-os com saborosas apreciações. Acabara de publicar o Virgem Negra. Estava cáustico.
– O Fernandinho foi um talento literário de primeira grandeza. Tinha talento para dar e vender, mas ficou limitado pela tralha do tempo – disse-me ele. – Pascoaes, pelo contrário, não tem tempo; a Lua dele já lá estava na primeira alvorada do mundo e lá há-de ficar no momento em que tudo acabar. É maravilhoso.
Pouco tempo depois, voltei a encontrá-lo na cave da Assírio & Alvim, onde ele ensaiava ao piano poesias suas. Recebeu-me com a mesma amabilidade e graça. Aí falámos de António Maria Lisboa e Leonardo Coimbra, via Sarmento Beires. Contestou a possibilidade do pensamento libertário de António Maria Lisboa poder ser aproximado do criacionismo vitalista de Leonardo. Era hipótese que eu levantara num livreco publicado uns meses antes, em 1989, O Mar e o Marão, que lhe fiquei de enviar para casa.
Enviei-lhe o livro e recebi telefonema dele agradecendo. Calava os desacordos em nome da liberdade e do coração, disse-me ele. Mais tarde, em 1995, publiquei em edição privada de cem exemplares a Carta a um Amigo sobre Teixeira de Pascoaes e o Cristo de Travassos, dedicada ao Luís Amaro, de que lhe enviei um exemplar e que mereceu desta vez carta e novo telefonema dele. Estava entusiasmado e queria falar comigo cara a cara. O ateísmo contraditório de Pascoaes, que eu explorava nesse texto, interessava-lhe muito; tinha segredos para me revelar. Combinámos um encontro na casa dele para tirarmos tudo a limpo.
Pus então pela primeira vez o pé na Rua Basílio Teles, ao pé do Instituto Português de Oncologia. Descobri o prédio dele, baixo e familiar, numa esquina. Tudo aquilo me pareceu conhecido e universal. Subi. O Mário morava no último andar, ao pé da clarabóia de vidro. Era o fim do dia e uma claridade luminosa, que parecia vir do nascer do mundo, caía do alto sobre a escada. Bati. O Mário demorou a abrir. Ajoelhou-se depois, quando me viu. Eu ajoelhei-me também, encantado com aquele homem de cabelo branco que se comportava como uma criança. Pediu-me para lhe pôr a mão na cabeça. E foi assim, desta forma quase sagrada, que eu entrei em sua casa.
O seu quarto estava mesmo ao pé da porta da entrada. As paredes estavam por pintar, escuras da humidade e da nicotina. Em frente da porta, encostada à parede, estava a cama de corpo único, que ele me apontou.
– Eis o túmulo – disse.
Falámos durante duas ou três horas, sentados na pedra daquela tumba. Fomos interrompidos apenas uma vez, por uma senhora pequenina, de olhos verdes, voz rouca de fumadora, que o veio chamar para tomar os remédios. Era a Henriete, a irmã com quem vivia. Retomámos logo de seguida com o mesmo entusiasmo. Cesariny falou-me como encontrou em 1950 em Amarante Pascoaes, como o começou a ler, como frequentou a sua casa, já no tempo do sobrinho João e da Maria Amélia, como o deu a conhecer a António Maria Lisboa, a Ernesto Sampaio, a Cruzeiro Seixas. Ligava Pascoaes ao surrealismo vivo e eterno, sem escola nem arte, ao mais espontâneo e vivo da imaginação humana.
No fim, fez questão de me mostrar no corredor a estante onde tinha os livros de Pascoaes, emprestando-me ao mesmo tempo um livro de Breton que lhe agradava especialmente, Entretiens (1952) e onde segundo ele o surrealismo e o pensamento libertário se davam as mãos com rara felicidade. No meio, por acaso, soltou-se da prateleira um livro de René Guénon, que tinha uma dedicatória do António Barahona.
– O António quer ‘ultrapassar’ o Breton, mas o Breton não se pode ultrapassar, porque também não pertence ao Tempo ­– exclamou ele.
Depois disso encontrámo-nos diversas vezes, uma delas, em Dezembro de 2002, na casa de Pascoaes, em Amarante. Tomámos o pequeno-almoço juntos na casa do poeta, servido pela sobrinha Maria Amélia, e depois descemos ao pequeno cemitério de Gatão, onde Pascoaes repousa numa campa rasa, com uma simples lousa, onde se inscrevem dois versos que ele propositadamente escreveu para ali figurarem (cito de memória): de tanta luz apagado/ de tanta palavra mudo.
Em todos esses encontros tive sempre da sua parte as mesmas manifestações de amabilidade e graça. Gostava de se expor, de mostrar tudo preto no branco, sem censuras, aberto e directo, mas era de uma correcção quase inexcedível. Recorria menos à palavra grossa e provocadora que ao sonho da catarse purificadora, raramente deslizando para o insulto ou para o desabafo crítico. Tudo nele era inocente e infantil.
A última vez que o vi foi a 3 de Maio de 2004 na Cinemateca, na apresentação do filme de Miguel Gonçalves Mendes. Do filme, recordo a cabeça do Mário acompanhada por um rugido de leão; do Mário, lembro a simplicidade atrabiliária com que se voltou para a sala, olhos fechados, quando as luzes se acenderam, dizendo com um encolher de ombros para um público de jovens e piercings:
– O poema que se ouve não é mau.
Riram os jovens. Pediram-lhe mais palavras e ele exclamou melancólico, entre Bénard da Costa e Miguel Gonçalves:
– Tudo isto é lindo, com todos a baterem palmas, a quererem que eu fale, mas o problema é que quando isto acabar vou ter de regressar sozinho a casa. E vocês nem sabem como aquilo para a Palhavã é frio e feio.
Era assim o Mário, mais nobre que feroz, mais simples que maldoso, mais santo que sibarita.
Partiu agora, de vez, e sem companhia, a 26 de Novembro de 2006. Tinha oitenta e três anos e deixa atrás de si um vazio imenso, porque foi dos últimos a escrever e a pintar com a autenticidade do espírito. Do seu tempo e da sua têmpera restam Cruzeiro Seixas e com certeza Luiz Pacheco, o terrível; depois não se percebe muito bem o que fica nem o que interessa.
Tudo o que me resta é abrir o Livro dos Mortos Tibetanos no capítulo décimo segundo, onde estão as palavras por aqueles que partiram. Leio-as e paro no momento em que se pede protecção para aquele que morreu. E faço também um desejo: que o terror da morte, a que o Mário era tão sensível, se possa transformar na clarividência sublime da vida, essa que ele sempre procurou através das palavras, das cores e dos gestos maravilhosos. Com eles esconjurou a miséria mesquinha deste tempo de plástico, dando-nos uma lição sincera de poesia e liberdade.