sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Pretextos (5)

Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa (3)*

Pedro Martins

Rafael Monteiro foi, antes de mais, um historiador. Talvez por isso, a sua obra filosófica percorre sobretudo, e quase sempre, os caminhos da filosofia da história. O pensador procura encontrar um sentido que englobe o movimento dos homens e dos povos no tempo e no espaço. No fundo, a própria história é uma viagem, e, como tal, tem um ponto de partida e um ponto de chegada.

O ponto de partida dessa viagem parece ser a queda narrada na alegoria do Génesis, em consequência do pecado original. Rafael Monteiro considera que, nesse preciso momento, termina sobre a Terra a Idade do Ouro. O movimento que então se inicia implica um gradual afastamento do princípio; e deve, por isso, ser considerado numa perspectiva cíclica, que é revelada simbolicamente pela imagem do círculo.

Isto significa que Rafael Monteiro não acredita num desenvolvimento histórico linear e, consequentemente, recusa a ideia de um progresso continuado da Humanidade. Continuada, só a decadência, a degradação, a descida degrau a degrau, porque a queda ainda não terminou. Esta visão pessimista da história, que está bem patente na sua obra historiográfica, conjuga-se notavelmente com a ideia de V Império, a que Rafael dedicou, aliás, um artigo publicado na revista Tempo Presente.

Quem ainda se recordar daquilo que o Pedro Sinde disse há um ano nesta sala, no colóquio sobre Agostinho da Silva, saberá que, de acordo com a Tradição, à Idade do Ouro se sucedem a da Prata, a do Bronze e a do Ferro, e que a estas quatro idades correspondem os quatro impérios sonhados por Nabucodonosor. Há depois um quinto império, que é, no sonho do rei da Babilónia, a pedra que se desprende da montanha sem intervenção de mão humana, e que irá pôr termo à história, isto é, aos impérios anteriores.

O quinto império, instituído por intervenção divina, opera a redenção da Humanidade e corresponde ao ponto de chegada do movimento histórico. Por aqui se vê que a filosofia da história de Rafael Monteiro é um messianismo profético e providencialista. Rafael acredita que o erro e o mal hão-de ser eliminados pela intervenção divina. Mas, para que a graça plenamente se manifeste e o reino de Deus se cumpra enfim na república dos homens, é necessário que estes exercitem as três virtudes teologais: a Fé, a Esperança e a Caridade. A esta luz se compreende a Idade do Espírito Santo, sucedendo à Idade do Pai e à Idade do Filho, anunciando e preparando o V Império, a Parúsia ou a segunda vinda de Cristo. Rafael aborda este tema admiravelmente em O Culto do Espírito Santo, um dos dois artigos que publicou no jornal 57.

O seu pensamento volta a estar, assim, muito próximo das ideias de Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes. Mas parece ser sobretudo na obra de Álvaro Ribeiro (e, em especial, nas páginas de A Razão Animada) que Rafael colhe os ensinamentos mais importantes.

Nada disto põe em causa a originalidade da sua obra filosófica. Essa originalidade reside principalmente nos caminhos que por ele são trilhados, ou seja, nos argumentos inovadores com que sustenta teses já anteriormente enunciadas por outros. Valerá para o pensamento fecundo de Rafael a citação de Goethe que ele emprega no escrito notável sobre a procissão das Chagas: “Não se anda só para chegar, mas para viver o caminho”.
É, por exemplo, o que sucede no primeiro artigo publicado no jornal 57, em Setembro de 1958, e intitulado Relações esquecidas do mito português, em que, conjugando subtilmente a leitura do Dom Quixote de Cervantes com o nosso Amadis de Gaula, consegue demonstrar a singularidade do destino histórico de Portugal no contexto medieval europeu. A sua ideia parece ser esta: a Idade Média termina muito mais cedo em Portugal do que no resto do velho continente. Com a vitória em Aljubarrota, viramos as costas à Europa, com quem nos não identificamos, e iniciamos a aventura marítima.

Há aqui um aspecto curioso, e muito significativo, para o qual gostaria de chamar a vossa atenção. É que nesse mesmo mês (Setembro de 1958), mas num outro artigo, publicado no Diário de Notícias, Rafael, partindo, com argúcia, das conclusões do insuspeito Lúcio de Azevedo, refuta brilhantemente a ideia de que os Descobrimentos portugueses, que são uma etapa necessária, e já cumprida, do nosso destino messiânico, possam ser cabalmente explicados por motivos de ordem material, económica e comercial.

O facto de Rafael ter publicado, quase em simultâneo, dois escritos da maior originalidade e que tão bem se articulam entre si, é susceptível de nos revelar a vastidão e a profundidade do seu pensamento e leva-me a supor que, noutras circunstâncias, ele poderia ter sido um dos grandes filósofos portugueses do século XX. É, aliás, o que pressinto de cada vez que leio o que ele escreveu sobre os painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, onde a autenticidade das suas ideias se estende às conclusões que tem a feliz ousadia de nos apresentar. Mas, sobre isso, vai agora falar-nos o Luís Paixão.

Cotovia, 16 de Setembro de 2007
*
Comunicação apresentada ao colóquio Rafael Monteiro, Sesimbra e a Filosofia Portuguesa, realizado na Biblioteca Municpal de Sesimbra, em 22 de Setembro de 2007.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Pensando à bolina (8)

Amor fati

Pedro Sinde

"Amor fati" é uma expressão latina que exprime a ideia de que se deve amar o seu próprio destino. De vez em quando somos confrontados com acontecimentos inevitáveis, mesmo que nos pareçam pequenos. Perante o inevitável, o necessário, o destino, podemos resignar-nos ou, então, numa atitude de alma mais nobre, aceitá-lo como se tivesse sido uma escolha nossa.
Somos muito menos do que a imagem superficial ridícula que fazemos de nós, mas também somos muito mais, isto é, existe em nós uma sabedoria latente, profunda, pré-natal, que ultrapassa tudo quanto podemos sonhar. Infelizmente estamos separados de nós mesmos, vivemos à superfície de nós mesmos.

No mito de Er, Platão descreve que a alma, antes de nascer, escolhe o seu destino. Perante isto, sabendo isto, podemos, pois, aprender a descobrir porque é que escolhemos aquele acontecimento da nossa vida. Aprendendo a amar o nosso destino, aproximamo-nos daquela parte de nós que sabe, daquela parte da qual estamos separados. Em religião chama-se a essa parte de nós, o anjo; em filosofia aristotélica, a enteléquia ou o intelecto activo; ela é o céu do nosso pensamento, nós somos a sua terra, a terra onde se realiza a sua acção.
O português é, dos povos europeus, aquele que melhor conhece a noção de "fado", mas deleita-se excessivamente nele, sem procurar compreendê-lo, quando aquilo que importava era precisamente que sublimasse esse sentimento no cadinho da emoção.

Este é, talvez, um dos mais difíceis caminhos, é, também, um dos mais belos.
Se amarmos o que nos acontece de tal modo que saibamos que foi desejado por nós, iremos percebendo também a razão de ser do nosso destino, mesmo, sobretudo, no meio do sofrimento.
De todos os acontecimentos, o mais terrivelmente fatal é a morte, a dos nossos queridos e a nossa. Mesmo a morte, a nossa morte, há-de ter sido desejada.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Pretextos (4)

Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa (2)*

Pedro Martins
É sabido que Rafael Monteiro foi um destacado elemento da Mocidade Portuguesa local. Por isso, ao chegar à idade adulta, no início da década de 40, estava naturalmente identificado com o Estado Novo, que lhe propunha uma determinada ideia de Deus, da Pátria e da Família. Não deixará de colher dissabores junto de figuras mais ou menos importantes do regime, mas isso são contas de outro rosário.

Um dia, porém, passados os momentos dramáticos do ciclone de 15 de Fevereiro de 1941, e atenuados os seus efeitos devastadores, algo muda. É chegada a altura de lhe darmos a palavra: “Vindo da terra das bruxas (Arruda) um dia chegou o António Telmo; e entrou na roda, foi o «eixo» da roda. Com ele aprendemos a ler os “Lusíadas”, a conhecer Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, a amar Teixeira de Pascoaes”.

Com apenas 16 anos, mas agraciado já com a leitura de um livro que decidiu toda a sua vida espiritual – Literatura e Ocultismo, de Denis Saurat –, António Telmo veio rasgar horizontes e abrir panoramas a quem, até então, estivera, de alguma forma, encerrado na cova funda, confinado às ruas estreitas do velho burgo piscatório.

A descoberta de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, que António Telmo lhe proporcionou, terá deixado marcas profundas a Rafael Monteiro. Aqueles autores não recusam propriamente a fórmula Deus, Pátria e Família, proclamada por Salazar; mas estão nos antípodas do ditador, e dão, por isso, um sentido bem diferente às três ideias basilares, que tão próximas se encontram das três disciplinas filosóficas fundamentais.

Será difícil dizer até que ponto o veneno da tradição portuguesa, que em boa hora lhe foi inoculado pelo António Telmo, irá mudar a sua vida. Qualquer conjectura que eu arriscasse acabaria por ser ridícula, quando ainda há pessoas que, sobre isso, nos podem dar o seu testemunho fidedigno. Se a imagem me é permitida, limitar-me-ei a afirmar que a semente lançada à terra encontrou um terreno fértil.

Há depois um segundo marco.

Com 36 anos, exactamente no meio do caminho da sua vida, na idade em que Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro ou António Telmo conceberam ou publicaram livros inaugurais e decisivos, Rafael Monteiro escreveu um espantoso Depoimento – é esse o título que lhe dá –, que se manteve inédito até 2001, ano em que foi recolhido no volume Alguns Mareantes Desconhecidos de Sesimbra e outros textos. De alguma forma, tudo ali é questionado, interrogado, interpelado. A começar pela famigerada trilogia, que Salazar não quis discutir e que, com esse seu gesto de recusa, pode ter tornado irrecuperável.

Tenho para mim que este é o seu escrito mais importante. É também aquele que mais facilmente nos permite filiar Rafael na filosofia portuguesa. Pela sua leitura, podemos verificar até que ponto este homem religioso, que incessantemente procurava Deus, se distancia, logo na sua infância, da Igreja Católica, para depois a criticar em certos aspectos da doutrina, ou denunciar as contradições existentes entre essa doutrina e a prática quotidiana.

Assim, Rafael Monteiro confessa-nos que “na catequese, com um lapitos, riscava a palavra “Romana” na frase do catecismo: “Católica, Apostólica, Romana”, pois entendia, no seu “senso ingénuo que deveria lá estar “Portuguesa”, pois em Portugal” “nascera e não em Roma”. Neste ponto, Rafael não poderia estar mais próximo de Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes, defensores da criação de uma Igreja nacional, portuguesa, lusitana.

Também a confissão e o celibato dos sacerdotes lhe causavam perplexidade ou confusão. Na sua óptica, a confissão, levando o sacerdote a absolver o fiel dos pecados cometidos, torna-o “um ente maior e melhor do que Deus”, e conduz necessariamente à sua deificação. O celibato dos sacerdotes percebe-se mal, torna-se mesmo incompreensível, quando a Igreja diz defender a Família e a tradição nos ensina que a Maternidade é superior à Virgindade, pois Nossa Senhora foi Esposa e Mãe.

É curioso observar que, de um certo ponto de vista, Rafael volta a estar muito próximo de Sampaio Bruno. Para este filósofo, a confissão auricular era o veículo de uma escravatura moral, que vinculava a mulher ao sacerdote; e só a eliminação do celibato imposto aos clérigos faria com que a mulher abandonasse espontaneamente o confessionário, pois esta, por uma questão de pudor e de orgulho, deixaria de confiar ao padre assuntos que ele, presumivelmente, iria comunicar à sua própria esposa.

De outro ponto de vista, a valorização que Rafael Monteiro faz do sacramento do Matrimónio, em detrimento do da Ordenação, identifica-o com Álvaro Ribeiro. É, aliás, nesta linha de pensamento que se insere outra crítica sua apontada à Igreja, motivada pela estranheza que lhe causa o facto de só serem “brancos os caixões das crianças e das pessoas solteiras, e negros os outros, como se o casamento, que a Igreja consagra, fosse pecado, acto impuro – contrário de bondade e de amor”.

Aliás, Rafael Monteiro diz não se entristecer perante a morte, pois, como cristão, vê nela uma forma de redenção. Neste aspecto, Rafael volta a seguir de muito perto a doutrina de Álvaro Ribeiro, e só não compreende que a Igreja “revista todos os actos fúnebres de panejamentos negros e chore o finado”. No seu entendimento infantil, “a Igreja deveria alegrar-se com a morte, se realmente crê, como propaga, ser a morte redenção”.

Perante tudo isto, bem se entende que Rafael Monteiro nos afirme não haver encontrado resposta para as suas interrogações no templo e nos sacerdotes, ao sentir vedado, ou interrompido, o caminho que, na sua infância, o unia a Deus.

Rafael vai, então, procurar essa resposta na filosofia, e de Platão e Aristóteles a Dante e a Hegel, lê quase tudo quanto de verdadeiramente importante há para ler. Agora, busca Deus livremente, e admite mesmo chegar a entrevê-lo aqui e ali, mas sentindo-o sempre longe, inacessível e estranho ao seu sentir de português.

Só a filosofia portuguesa lhe dará a resposta que procurava, só ela lhe mostrará o caminho de regresso a Deus. A leitura contínua e meditada da obra de Álvaro Ribeiro vem a revelar-se fundamental. E Rafael confessa, por fim, ter chorado ao ler o prefácio de A Razão Animada, livro a que simplesmente chama o Evangelho, a Boa-Nova da Pátria.

A leitura da obra-prima de Álvaro parece ter tido o fulgor das revelações. Foi decisiva e definitiva. À parte os escritos sobre os painéis ditos de Nuno Gonçalves, que são mais tardios, a sua obra filosófica virá a lume quase imediatamente, nos três anos seguintes, entre 1958 e 1960, em boa parte nas páginas do jornal 57. Vamos agora falar um pouco sobre ela.

(continua)
* Comunicação apresentada ao colóquio Rafael Monteiro, Sesimbra e a Filosofia Portuguesa, realizado na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 22 de Setembro de 2007.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Pensando à bolina (7)

Os esotéricos

Pedro Sinde

Chama-se mentira ao acto de falar sobre aquilo que não sabemos. Visto desta perspectiva, o homem é naturalmente mentiroso e pouco mais é do que isso, porque, no fundo, nada sabe do mundo em que vive e passa todo o tempo numa tagarelice fantasista .
A mentira atinge a sua mais irónica perversão entre as pessoas ditas "espirituais", que gostam de "esoterismo". Falam de "corpos astrais", de "mundos paralelos", "reencarnação", "chakras" e organizam a sua vida em torno disso. Não deram ainda o primeiro passo na nobre doutrina da autognose e falam como se soubessem tudo, tudo explicando por um ou dois termos da moda: energia e vibração. Um e outro são utilizados num leque de acepções tão vasto que neles cabe qualquer coisa; e como neles cabe qualquer coisa, servem para explicar tudo.
Passam horas a meditar; mas que coisa é meditar? São incapazes do mínimo gesto de bondade, de olhar atentamente o outro e ver o que ele necessita; vivem fechados no seu umbigo, a que chamam, deleitados, o chakra do plexo solar, se não lhe derem um outro qualquer nome hindú ou chinês difícil de pronunciar.

Agora mesmo o sol, pondo-se, chegou ao horizonte depois de ter estado escondido por uma longa faixa de nuvens. A luz laranja cantou subitamente o seu hino fulgurante, ígneo; quase é possível ouvi-la. Magnífico!
Deixemos, pois, esses astrais, quando temos aqui mesmo o astro. Deixemos as literatices e olhemos para o mundo magnífico em que estamos. Em vez de uma meditação, façamos uma oração e que ela não seja um pedido, mas apenas um agradecimento. Já temos tudo connosco, não precisamos de mais; pelo contrário, precisamos é de menos, porque o que temos a mais não nos deixa ver.