terça-feira, 20 de novembro de 2007

Pensando à bolina (11)

A Casa Albano

Pedro Sinde

Na terra onde vivo há, como em todas as terras, uma casa da sorte onde se vende lotaria e coisas afins, onde se vende a "sorte". O lema destas casas é o de que só sai a sorte a quem joga.
No jogo da vida estamos todos envolvidos, queiramos ou não, joguemos ou não, porque se não jogamos a vida, é ela que joga connosco. Muitas vezes cremos que somos nós a jogá-la e é ela, no entanto, quem joga em nós.
Nunca gostei, porém, da comparação da vida com o jogo, porque sempre me pareceu entrever aí o perigo de a tomarmos por uma coisa lúdica (hoje todos parecem ter como fim último da vida a diversão!), quando o papel do homem é o de ser uma ponte entre o natural e o sobrenatural. Para dizer isto bem dito, nem devia falar em "natural", pois nada na vida o é, só os nossos olhos pobres precisam do descanso da luz sobrenatural para se refugiarem na sombra do natural; assim é que chamamos "natural" àquela parte do sobrenatural com a qual convivemos diariamente. Se víssemos a vida como sobrenatural sempre, isso implicaria uma mudança radical no sentido das nossas vidas; não estamos, todavia, interessados em mudanças destas.

Mas voltemos à Casa Albano; nessa casa onde se vende a taluda, o totoloto, o totobola, o euromilhões e tudo o que se possa pensar nesta gama, também se faz uma outra coisa muito curiosa. Nos seus grandes vidros afixam-se, mesmo ao lado dos números premiados, os anúncios necrológicos; de tal modo que, nas suas montras, as mesmas pessoas procuram os números para ver se lhes saiu a "sorte grande" e o nome do último "sorteado", levemente deliciadas com a certeza de que nunca verão ali o seu nome.

Se a taluda sai a poucos, já aquela outra sorte, essa sim grande, imensa, tremenda, sai a todos. Vejo na Casa Albano, de mãos dadas, a imagem paradoxal da pródiga dama segurando o corno da abundância e a ceifeira terrível de gadanha na mão; ambas sorriem e os transeuntes não sabem se serão os próximos a ganhar o sorteio ou a ser sorteados.

Uma ligação estranhamente profunda parece haver entre ambas, como se filhas do mesmo pai, como se divisão de uma mesma energia, como se dois extremos que se tocassem; enfim, uma pescadinha de rabo na boca, que é o nome que o povo português dá à hermética serpente Ouroboros.

Ao passar ali todos os dias, só eu pareço, no entanto, não querer nada nem com uma nem com outra, discretamente acelerando o passo no outro lado da rua.

1 comentário:

CMondim disse...

interessante o paralelismo ;)
Mt bem Pedro!