sábado, 29 de dezembro de 2007

Pensando à bolina (13)


A flor da Saudade é a Açucena

Pedro Sinde


Lilium Album. The book of plants, Basilius Besler
Quem assim o diz é Isidoro de Barreyra, um desses monges secretos que Sampaio Bruno tanto gostava de repescar, perdido no labirinto estreito de uma qualquer biblioteca. O livro em que o diz tem o seguinte cativante título: Tratado das significaçoens das plantas, flores, e fruttus, que se referem na sagrada escrittura, tiradas de divinas, e humanas letras, com suas breves considerações.
Isidoro de Barreyra, foi monge da Ordem de Cristo em Tomar, no Convento de Cristo. Este livro interessantíssimo é de 1622. Também Camilo o refere a propósito da Saudade.
Os saudosistas deviam atentar neste facto interessante que é o de haver uma flor que é o símbolo da Saudade.
Se seguirmos atentamente a explicação de Isidoro de Barreyra veremos que há ali uma cifra. Em primeiro lugar o monge começa por nos apresentar a Açucena na sua significação bíblica como símbolo de pureza. Aparece, por essa razão, ao lado da Virgem nas representações da anunciação. De seguida, muda o discurso e, ao contrário do que acontece no resto do livro, refere a significação da Açucena "entre nós", pressupõe-se que querendo dizer entre os portugueses, mas pode ter outra significação mais funda.

Ora, entre nós, a Açucena significa não a pureza, mas a Saudade. A justificação que o monge dá para isso é muito interessante, sobretudo porque não é exacta. Quer dizer, Isidoro de Barreyra explica que a Açucena tem a característica de florir mesmo quando cortada ou arrancada da raiz e colocada num recipiente com água. Ora, isto é exacto, o que não é exacto é que a Açucena seja a única flor com esta propriedade e se essa é a razão para que seja ela a simbolizar, em vez de outra, a Saudade, então há aqui um erro estranho. É por esta razão que me parece que aqui se esconde qualquer coisa de muito importante e que eventualmente estaria ligado com a Ordem de Cristo naquela altura. Um observador tão fino, como era Isidoro de Barreyra, nunca cometeria um erro tão grosseiro; o erro é uma cifra.
Do meu ponto de vista, Isidoro de Barreyra está a cifrar algo muito importante ligado à tradição portuguesa e à Ordem de Cristo. A forma pela qual ele apresenta o assunto ali no livro, dá a entender que a Açucena representa exotericamente a pureza na iconografia Católica, mas esotericamente representa a Saudade, na tradição portuguesa. Isidoro de Barreyra diz assim: "E ainda que muitos attribuão isto à puresa da Virgem, com tudo segredo tem pintaremse as Cessens [Açucenas] só neste mysterio, & não em outros."
Tudo isto me parece ligado à noção de exílio. No próximo Pensar à bolina procurarei explicar, se vi bem, qual a razão.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Vox populi, vox Dei (2)

Fia-te na Virgem e não corras...

Gil da Gama

À superfície, parece tratar-se de um adágio com fácil interpretação: o melhor é fazeres o que tens a fazer e deixares-te de "crendices". Mas isso é apenas à superfície, porque se olharmos bem veremos que este adágio é o que é mas ao contrário do que é; vou-me explicar. Basta que invertamos a ordem dos factores, que, neste caso, não tem nada de arbitrário, e logo veremos de outro modo: não corras, fia-te na Virgem. Assim visto, estamos perante algo de uma natureza diferente, equivalente a outros adágios do mesmo tipo e que demonstram a forte confiança do povo português no sobrenatural: Mais vale quem Deus ajuda, do que quem muito madruga ou O pouco com Deus é muito, o muito sem Deus é nada. Mas como no povo português convivem duas almas em simultâneo, uma idealista e outra realista, uma que o faz acreditar no fado e outra que o faz ver que está no mundo para agir, temos de encontrar um ponto em que as duas almas, opostas só na aparência, se reúnam, aquele ponto em que o português possa voltar a dizer como disse Pessoa:

O homem e a hora são um só

Quando Deus faz e a história é feita.

Aqui, é Deus o motor imóvel e o homem é aquele que, sendo movido, faz mover; é o construtor de pontes, restaurou a sua condição primordial de pontifex.
Em qualquer um destes adágios é patente a ideia de que a acção humana desligada do divino é "nada"; não há um convite à inacção, mas apenas a ideia de que aquilo que o homem tem, pouco ou muito, se for acompanhado do divino, é "tudo". Se é verdade que Deus escreve certo por linhas que ao homem parecem tortas, então aceitando a aparente sinuosidade com que se tece cada um dos nossos destinos, poderemos entrever a grandiosidade de um destino maior que se cumpre livremente para glória do mais alto. Assim possamos dizer: Fia-te na Virgem e corre…

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Escaparate (3)


Contos da Coluna do Meio,
de João Rêgo

Pedro Martins

Desaparecido, de forma trágica e prematura, num acidente de aviação ocorrido em Julho deste ano, pôde, porém, felizmente João Rêgo deixar-nos um apreciável testemunho espiritual no livro intitulado Contos da Coluna do Meio, onde se recolhem textos publicados na imprensa local de Montemor-o-Novo, onde o escritor residiu entre 1987 e 2005.

As linhas mestras deste pequeno volume tornam patente a influência da filosofia portuguesa – a cujo grupo pertenceu – no trajecto filosófico do autor: a sugerida crença no poder criador e movente do pensamento reflectido na palavra ou a confiança reiterada na interventora misericórdia divina são assomos autênticos de esperança e de caridade nas breves páginas destes Contos da Coluna do Meio, na linha do pensamento de Álvaro Ribeiro, filósofo a quem João Rêgo havia consagrado a elaboração de uma importante antologia (A Medicina em Álvaro Ribeiro, Edições Tomé Natanael, 1992).


Com excepção do derradeiro escrito – que, aliás, confere o título à recolha –, todos os restantes são dedicados a personagens femininas, numa exaltação nobilitante da figura da mulher, que se furta aos preconceitos feministas para implicitamente os repelir. Para tanto, o autor recorre, não raras vezes, ao cânone literário universal, lançando mão de narrativas mitológicas, históricas e ficcionais, cuja exemplaridade é trazida à evidência por mor de uma exegese lúcida e inteligente. A tudo isto acresce a mestria de um comunicador dotado, que, dirigindo-se a um público heterogéneo e presumivelmente não iniciado, terá sabido, por certo, motivar nos leitores a apetência pelos grandes textos clássicos, a partir de uma pessoalíssima visão filosófica, a que a força sugestiva do título dado ao livro oferece esclarecedora coloração.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Vox populi, vox Dei (1)

Os adágios e a sabedoria perene

Gil da Gama

Nogueira, Árvores de Portugal (Guia FAPAS)
Nestes tempos do fim, o povo assume uma importância inaudita. Os sábios são cada vez em menor número e, cautelosos, são cada vez mais reservados. Na ausência dos sábios, que são o intelecto activo de um povo, resta-nos a memória que guarda os seus ditos ou adágios. Ao povo está reservada a nobre tarefa de ser o guardião da sabedoria.
Os adágios não pertencem a uma época, pelo contrário, são a expressão da condição humana. Podem ser comparados aos Salmos, ambos representam o homem universal. Ninguém conhece a origem dos provérbios; vindos do dia dos tempos primordiais, providencialmente guardados, como numa arca de Noé, no seio do povo, dirigem-se, pois, ao ser humano decaído, dando-lhe preciosas indicações para a sua redenção.
Nos adágios escondem-se sempre vários sentidos latentes, dos quais o povo usa, e bem, apenas o primeiro, o mais evidente.
Os desdenhosos e os invejosos usam e abusam do adágio que diz: Deus dá as nozes a quem não tem dentes. A interpretação imediata deste provérbio diz-nos que a sorte parece mal distribuída, revela-nos o descontentamento daqueles que vêem a desordem do mundo, daqueles que sempre estão descontentes. Uma interpretação mais funda leva-nos, porém, para outro lado: a noz é o sinal do conhecimento, dentro da casca dura está o fruto bem protegido. É conhecida a impressionante analogia entre a noz e o cérebro, basta ler as formas, para que logo nos ocorra a bela expressão de Jacob Boehme, que dá título a um dos seus mais curiosos livros: De signatura rerum, Sobre a assinatura presente nos seres, em tradução livre.
A noz, sendo a expressão do conhecimento verdadeiro, bem protegido, é entregue por Deus àqueles que não têm dentes, porque só esses não o trituram, não o desfazem, não se podem apoderar dele; dar nozes a quem tem dentes, seria como dar pérolas a porcos ou, para lembrar um outro provérbio mais esquecido: comida fina em corpos grossos faz mal aos ossos. O povo português exprime um saber espontaneamente aristotélico, sabendo reconhecer que cada coisa tem o seu lugar natural e, por isso mesmo, cada coisa procura o seu lugar natural. Desejar um lugar que não é o da sua natureza é a fonte da inveja e da desordem patente no mundo, pois hoje todos querem o que os outros têm e ninguém ama aquilo que tem.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A sombra de Eurídice (5)

Morte e Ressureição

Carlos Aurélio

Contigo, minh’alma, desci
Até aos confins da incompreensível dor,
Por abruptas feridas abertas de cor,
Em ti me perdi e me achei de memória.
Memória, essa agulha que cose, essa faca que corta
Coisas e loisas, vidas, lixo e chicória,
Esse sangue corrido, fendido,
Essa voz ouvida, enrouquecida,
Memória, esse silêncio que engendra a vida já morta.

Fui contigo de mão dada
Visitar a dor, cego e seco em meu desalento,
Desci sem lágrimas o declive que sugava
Até às goelas escancaradas, ó infernal tormento!
Desci, desci sempre,
Empurrado por mim, puxado p’lo diabo,
Até que, farto, estanquei e disse: “Aqui acabo!
Já não vejo céu que me levante.
Onde és, meu Deus?...Como vou adiante?”


Chamei-te, ó pedra surda,
Ainda vi luz e orvalho ─ estou a lembrá-lo.
Ansiei por ti, ó morte, sombra da árvore bendita,
E também te vi cansada, desdita.
Falavas com o vento, ias tu consolá-lo.
Disse adeus e abracei-vos, ó céus,
Juntei as mãos e pus-me todo dentro delas,
Ergui-as já secas, ardendo lúgubres como velas,
E assim desci, consumido em mortalhas e véus.

Gritei por ti, ó andorinha fugidia,
E só vi penas negras, no céu as primeiras
Asas que, com o meu Anjo me alembravam
As preces de Jesus no Horto das Oliveiras.
Subi, subi sempre,
E clamei por vós, gente irmã,
Olhares tardios do amor abandonado,
Rostos baços de vida vã,
Calvário sem Domingo ressuscitado.

Até que por ti, ó Espírito, então reconheci:
Morri e, enquanto anoitecia, já era o sol que se erguia.
Ei-lo pujante, hóstia solar, a verdadeira,
Vi-o a levantar-me da cama derradeira.
Contigo minh’alma então sim, vivi,
E perguntei aos choupos e vendavais:
“Que milagre é este? Morro de pé, bem o sei!”
E eles assim mudos, silentes e sem ais,
Me disseram: “É a tua voz que te acorda,
a do sol,
a do teu Cristo e teu Rei!”

1 de Dezembro de 2007

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Pensando à bolina (12)

As mil e uma noites de Dinarzade (I)

Pedro Sinde

- Todos pensam que a heroína d'As Mil e uma Noites é a bela e sábia Xerazade, mas não é; ou melhor, não é inteiramente.

Foi assim que Dinis me começou a falar da leitura que tem feito desta obra magnífica. Fiquei intrigado e perguntei-lhe quem era, então, o herói, se seria o Sultão.

- Não, o Sultão é levado pela história; a vida de Xerazade parece estar nas suas mãos e, no entanto, ele é que está nas mãos dela. A verdadeira heroína é a irmã de Xerazade: Dinarzade. Vou procurar explicar-te porque penso assim. Como sabes, o Sultão, traído pela mulher que lhe foi infiel, para não voltar a ser traído, resolve a cada dia desposar uma nova mulher, mandando-a matar no dia seguinte, depois da noite de núpcias.

Xerazade, querendo libertar o reino e o próprio Sultão de tal infelicidade, oferece-se ela mesma ao Sultão. Tem um plano em mente. Depois de casada e passada a noite de núpcias, mas antes de o sol nascer, começaria a contar uma história ao Sultão, mas por tal modo que a tivesse de interromper com o nascer do dia, altura em que o Sultão partiria para os seus afazeres. Teria, no entanto, de a interromper num ponto tal que o Sultão, levado pelo enredo, isto é, enredado, a poupasse esse dia para ouvir o final da história antes da manhã seguinte. Para executar este plano, necessita, no entanto, da colaboração de alguém que a acorde antes do sol nascer e lhe peça "desinteressadamente" para continuar a história. À sua irmã, Dinarzade, cabe essa missão grave de, todos os dias, a acordar antes do nascer do sol e, com ela, o Sultão, que partilhava o leito com Xerazade.
Dinarzade é, portanto, aquela a quem cabe estar vigilante e, simultaneamente, ser o estímulo para o início de cada história. Ela é a imagem do motor imóvel, age sem agir; é ela quem acorda a irmã e o Sultão, mas quem a acorda a ela, Pedro? Ela é que é o princípio do movimento.
Percebes agora porque é que me parece que a verdadeira heroína é a Dinarzade? Ela é o espírito da irmã, que é, por sua vez, a alma do Sultão. Para que as histórias de Xerazade actuem sobre nós como actuam sobre o Sultão devemos descobrir, de algum modo, a Dinarzade em nós, esse espírito que todos os dias nos acorda para a história que temos na nossa alma e que vemos desenrolar-se no mundo fora de nós. Mas as mil e uma noites só começam aqui, há mais mistérios essenciais que gostava de conversar contigo. Isso terá de ficar, no entanto, para outro dia, porque agora mesmo tenho de ir embora e ver que história me conta Xerazade neste dia.

E assim fiquei eu, como o Sultão, inquieto, à espera que o Dinis me fale de outros "mistérios essenciais" guardados n'As mil e uma noites.