sábado, 7 de julho de 2007

Bellum sine bello

Carta a António Cândido Franco

Pedro Sinde

Meu caro Cândido Franco

Escrevo-te a propósito de uma carta que dirigiste ao António Telmo; não cometo nenhuma inconfidência pois tu mesmo tornaste a carta pública nos Teoremas de Filosofia (n.º 8). Assim, venho eu mesmo tornar pública esta carta que te dirijo.

Não se trata de uma resposta à tua carta, só o António Telmo o poderia fazer e optou discretamente por deixar cair ali o assunto, tendo até inserido o seu texto (A Cabra, Teoremas de Filosofia, n.º 7), que originou a polémica, se assim me posso expressar, juntamente com a tua carta no seu último livro (Congeminações de um neopitagórico). Discretamente, nesse livro, creio ter dado uma resposta à tua carta, ao inserir debaixo do mesmo capítulo (Bellum sine bello), para lá dos textos referidos, dele e teu, uma entrevista à revista brasileira Encontro, brilhantemente conduzida pelo poeta Ângelo Monteiro (esta entrevista foi publicada nos Teoremas, n.º 3). Lá chegarei.

Esta carta não procura responder à tua, verás que mais do que responder, ela procura perguntar. Estamos já em 2007 e a tua carta é de 2003, poderás por aqui verificar a natureza do meu intuito ao escrever-te agora, quatro anos passados.

Para quem não conheça o texto de António Telmo e a tua carta, creio que pode ser útil dizer que a polémica se centra em três pontos que tu mesmo referes sintetizando; tudo tendo por origem um álbum editado pela Assírio em que se reúnem desenhos de Pascoaes:

1. De que modo se podem interpretar os desenhos de Pascoaes?
2. O que é o surrealismo?
3. Que relação existe entre Mário Cesariny e a filosofia portuguesa?

Estes três pontos ligam-se subtilmente numa só questão: que relação existe entre o surrealismo em Portugal e a filosofia portuguesa?

1. Sobre a interpretação dos desenhos de Pascoaes

Pascoaes fez a sua obra como homem da palavra e não pela imagem. Por esta razão não há que dar demasiada importância a um aspecto que ele nunca quis tornar público. Em todo o caso, se queremos conhecer bem o seu pensamento, podemos também contar com esse aspecto. Aquilo que António Telmo procurou fazer foi mostrar que os desenhos “nocturnos” de Pascoaes devem ser vistos à luz, quer dizer, devem ser postos ao lado da sua obra luminosa; deixados sozinhos poderiam ser tomados erradamente como um aspecto tenebroso. É o mesmo, aliás, que acontece com o seu livro Duplo Passeio, é um passeio por dois lados do ser, que não são a luz e as trevas, mas o dia e a noite, o que é muito diferente; poderíamos dizer ainda que se trata da ausência e da presença, se quisermos estabelecer esta relação não já com duas forças cósmicas, mas com duas forças antropológicas ou anímicas. A noite não é a treva; podemos dizer que se estabelece entre a noite e o dia a mesma relação que entre o silêncio e o verbo; já a treva seria como que a palavra às avessas, quer dizer, o ruído.

2a. Surrealismo e a sua etimologia

A argumentação que usas para refutar a interpretação do António Telmo a propósito do termo “surrealismo” impressionou-me. Procuraste levar tudo para o campo da etimologia, como se o professor de francês que foi António Telmo pudesse ignorar a diferença entre sous e sur. Não, não se trata de etimologia; trata-se da eficácia da palavra. Quando digo “surrealismo”, a ideia que se me impõe, malgré moi, é a de algo que está por baixo do real. Se os fonemas são na sua forma a expressão do significado, da ideia, então aquele “su” aparece-nos necessariamente como o que está por baixo, o que subjaz. Não serve argumentar que essa não é a etimologia e que esta é “sobre” (sur), o que importa é o modo como é apreendida a palavra; e a isto não escapa mesmo o erudito, pois também a ele, no uso corrente, se impõe essa ideia necessariamente. A única forma de escapar seria a de adoptar sempre a forma sobre-realismo ou supra-realismo. Aí sim, claramente, não poderia haver confusão. Mas como nestas coisas da língua nunca há coincidências, é necessário tirar consequências da escolha da tradução de surréalisme por surrealismo. É o que faz o António Telmo.

De resto, mesmo o francês não está imune a esta confusão, pois, oralmente aquele “su”é ouvido como “sous” e se é ouvido, é interpretado. Será um acaso infeliz, dir-me-ás, que no francês sejam tão semelhantes o sous e o sur. Bom, mas que culpa temos nós que os franceses confundam o que está em cima com o que está em baixo? O génio da sua língua lá saberá o motivo por que deixou assim essa possibilidade, talvez fecunda, de confusão, talvez até haja virtualidades desconhecidas nisto que nos aparece como uma falta de clareza, sobretudo num povo que tão cartesianamente crê saber distinguir o preto do branco. Será. Certo é que a palavra ouvida soa sempre como su-réalisme, porque o r de sur se funde com o r de réalisme, deixando suspenso e destacado o su, que em português soa a sub e em francês a sous. Certo, certo, é que o génio da língua portuguesa não se presta a confusões e dá-nos para o sous o termo sob ou sub e para o sur o termo sobre. O português muito bem distingue entre o que está em cima e o que está em baixo.

2b. Surrealismo e abjeccionismo

Não sei se a distinção teórica entre uma e outra correntes será muito eficaz quando se pensa no comportamento. Mesmo que deixemos, como devemos deixar, o puritanismo de lado, algumas das descrições que o próprio Cesariny faz do seu comportamento, parecem situá-lo mais do lado dos abjeccionistas do que do lado dos outros, dos surrealistas propriamente ditos.

A propósito da descida aos infernos, que a ninguém desejo, poderíamos depois conversar demoradamente. É difícil de pensar no que pode estar significado nessa expressão; todavia, não creio que isso deva ser entendido ou confundido com o “abjecto” e isso parece estar significado nesta distinção: os abjeccionistas são os que ficam lá, no abjecto; os surrealistas são os que descem lá, mas depois ascendem.

A poesia clássica que se refere a este tema não deixa qualquer margem para que o concebamos por esse modo. Quer dizer, não se trata de experimentar o abjecto nem o mal. O inferno só o é quando nasce na mitologia cristã enquanto tal; antes disso é o reino dos espectros, dos mortos. Também aqui não se deveria confundir a noite com a treva.

A este propósito recorres à Arte Poética do António Telmo. Há aqui, porém, uma questão essencial que não permite esse recurso. Não vou entrar sequer no plano da argumentação, mas apenas lembrar-te que é o próprio António Telmo que, naquela entrevista, já referida, republicada nos Teoremas (n.º 3), afirma o seguinte: “A minha Arte Poética vale pelo último capítulo que foi escrito para a sua segunda edição”; concordaremos os dois que o juízo é severo demais, no entanto, é o próprio autor quem o faz e referindo-se explicitamente à doutrina da “descida aos infernos” que ali pôs! Esclarecendo o seu pensamento actual, explica que a descida aos infernos é, na realidade, a descida ao mundo das origens: é Eneias que consulta o pai, Ulisses que fala com a mãe, Fausto que desce até ao lugar onde estão as mães, Jesus que de lá retira os patriarcas. Com isto, António Telmo situa a reflexão sobre a descida num plano completamente diferente do surrealismo.

A certa altura na tua carta interrogas o António Telmo, a propósito da descida aos infernos, nestes termos: “Disto mesmo nos fala o seu livro de estreia, Arte Poética. Lembra-se, António Telmo?” E continuas: “Se bem compreendi a sua arte poética, não pode haver maturidade humana vital sem a experiência perigosa que os heróis clássicos faziam do mundo inferior (…).” Parecendo responder, avant-la-lettre, à tua carta, a resposta surge, pronta, na entrevista com dois anos de antecedência: “Mas alguma vez eu disse que não se pudesse ser grande poeta sem a experiência da descida aos infernos? Valha-nos Deus!”

Deduzo, naturalmente, que não leste a entrevista, por qualquer razão circunstancial, se tivesses tido oportunidade de a ler, estou certo, terias evitado aquele momento, tão entristecedor, em que recomendas a leitura dos livros de Breton ao António Telmo.

3. A relação entre a filosofia portuguesa e o surrealismo

Uma coisa deveras me tem intrigado no que dizes sobre a relação entre a filosofia portuguesa e o surrealismo em Portugal: colocas-te numa posição de mediador, sentindo que aqueles dois movimentos, desencontrados no tempo, incapazes de se compreender mutuamente, por esta ou aquela razão, se deviam encontrar agora. Não vou procurar, porque não é o lugar e porque não tenho competência para tal, ver até que ponto um e outro são compatíveis. Uma diferença, porém, se me apresenta logo à partida. A filosofia portuguesa não é um movimento, ao contrário do surrealismo que, esse sim, foi um movimento. Vejo-te aqui como um D. Pedro a fazer rainha, depois de morta, o surrealismo. É um belo gesto, no melhor do D. Quixote; só com quixotes isto hoje pode ir! Todos os da filosofia portuguesa são, contigo, quixotes!

Não podemos, todavia, situar o surrealismo no mesmo plano da filosofia portuguesa. A filosofia portuguesa, tal como a viu Álvaro Ribeiro, existe latente desde a origem da pátria e talvez mesmo antes; foi-se explicitando em monumentos arquitectónicos, literários, na língua, na história; e é por isso que enquanto houver um português haverá filosofia portuguesa, latente mas presente. Se hoje vivemos um período de ocultação, isso não será assim sempre. O trabalho está quase todo por fazer e é preciso continuar a estudar Portugal, olhar para trás para com mais nitidez percebermos a direcção do caminho que temos pela frente. É dramático que, sendo portugueses, nos ignoremos a tal ponto que necessitemos de uma arte de ser português!

É por isso que a filosofia portuguesa não pode morrer, ela não é um movimento, ela é a causa do nosso movimento.

Ela estará latente, sim, mas só até àquela altura em que a filosofia for já plenamente operativa, quando sair dos livros que agora são a sua necessária arca de Noé e que a protegem até ao fim deste dilúvio que por nós, avassalador, passa (até quando?).

A pergunta que gostava de te fazer, para encerrar esta carta, que já vai longa, é a seguinte: uma vez que te colocas como intermediário entre a filosofia portuguesa e o surrealismo, movimento francês presente em Portugal, porque é que te incomodou tanto o texto de António Telmo sobre Cesariny e o surrealismo e parece ter incomodado tão pouco o ataque injusto desferido por Cesariny à filosofia portuguesa? É que vi-te reagir prontamente ao primeiro e nunca vi – ponho a hipótese de desconhecer algum texto teu… – qualquer reacção tua ao segundo. Ocorre-me uma imagem: o Quixote verá não só gigantes nos moinhos, mas também moinhos nos gigantes? Outra imagem poderia ser esta: uma ponte liga duas margens, mas em ambos os sentidos.

São estas as perplexidades que tenho sentido e que não queria, por lealdade à nossa amizade, deixar de te as expor. Se o faço assim, em público, é porque sigo aquele lema de Sampaio Bruno que diz: “Guerra às ideias, paz aos homens”, seguro de que entre nós a paz permanecerá no abraço amigo que do norte ao sul te envio,

Pedro Sinde

2 comentários:

Ruy Ventura disse...

Não tenho de responder a uma carta dirigida a António Cândido Franco, porque só ele lhe poderá dar resposta. Nem comento em geral o seu conteúdo, porque - apesar de ter lido todas as peças da "polémica" entre Telmo e Franco - acho que Pedro Sinde tem toda a liberdade de discordar do autor de "Viagem a Pascoaes". Registo no entanto, para além das divagações fonéticas, como ponto negativo do texto do autor de "Terra Lúcida" o seu completo desconhecimento do verdadeiro carácter do surrealismo, anti-movimento internacional que continua bem vivo por todo o mundo.
Sem me integrar, por opção,nem na filosofia portuguesa nem no surrealismo (reconheço em ambas as partes defeitos e qualidades), estou ao lado de António Cândido quando defende que os dois lados só ganhariam se se entendessem.

Ruy Ventura disse...

Escrevi "completo desconhecimento" quando queria escrever "conhecimento parcial". As minhas desculpas.