sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Pretextos (4)

Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa (2)*

Pedro Martins
É sabido que Rafael Monteiro foi um destacado elemento da Mocidade Portuguesa local. Por isso, ao chegar à idade adulta, no início da década de 40, estava naturalmente identificado com o Estado Novo, que lhe propunha uma determinada ideia de Deus, da Pátria e da Família. Não deixará de colher dissabores junto de figuras mais ou menos importantes do regime, mas isso são contas de outro rosário.

Um dia, porém, passados os momentos dramáticos do ciclone de 15 de Fevereiro de 1941, e atenuados os seus efeitos devastadores, algo muda. É chegada a altura de lhe darmos a palavra: “Vindo da terra das bruxas (Arruda) um dia chegou o António Telmo; e entrou na roda, foi o «eixo» da roda. Com ele aprendemos a ler os “Lusíadas”, a conhecer Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, a amar Teixeira de Pascoaes”.

Com apenas 16 anos, mas agraciado já com a leitura de um livro que decidiu toda a sua vida espiritual – Literatura e Ocultismo, de Denis Saurat –, António Telmo veio rasgar horizontes e abrir panoramas a quem, até então, estivera, de alguma forma, encerrado na cova funda, confinado às ruas estreitas do velho burgo piscatório.

A descoberta de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, que António Telmo lhe proporcionou, terá deixado marcas profundas a Rafael Monteiro. Aqueles autores não recusam propriamente a fórmula Deus, Pátria e Família, proclamada por Salazar; mas estão nos antípodas do ditador, e dão, por isso, um sentido bem diferente às três ideias basilares, que tão próximas se encontram das três disciplinas filosóficas fundamentais.

Será difícil dizer até que ponto o veneno da tradição portuguesa, que em boa hora lhe foi inoculado pelo António Telmo, irá mudar a sua vida. Qualquer conjectura que eu arriscasse acabaria por ser ridícula, quando ainda há pessoas que, sobre isso, nos podem dar o seu testemunho fidedigno. Se a imagem me é permitida, limitar-me-ei a afirmar que a semente lançada à terra encontrou um terreno fértil.

Há depois um segundo marco.

Com 36 anos, exactamente no meio do caminho da sua vida, na idade em que Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro ou António Telmo conceberam ou publicaram livros inaugurais e decisivos, Rafael Monteiro escreveu um espantoso Depoimento – é esse o título que lhe dá –, que se manteve inédito até 2001, ano em que foi recolhido no volume Alguns Mareantes Desconhecidos de Sesimbra e outros textos. De alguma forma, tudo ali é questionado, interrogado, interpelado. A começar pela famigerada trilogia, que Salazar não quis discutir e que, com esse seu gesto de recusa, pode ter tornado irrecuperável.

Tenho para mim que este é o seu escrito mais importante. É também aquele que mais facilmente nos permite filiar Rafael na filosofia portuguesa. Pela sua leitura, podemos verificar até que ponto este homem religioso, que incessantemente procurava Deus, se distancia, logo na sua infância, da Igreja Católica, para depois a criticar em certos aspectos da doutrina, ou denunciar as contradições existentes entre essa doutrina e a prática quotidiana.

Assim, Rafael Monteiro confessa-nos que “na catequese, com um lapitos, riscava a palavra “Romana” na frase do catecismo: “Católica, Apostólica, Romana”, pois entendia, no seu “senso ingénuo que deveria lá estar “Portuguesa”, pois em Portugal” “nascera e não em Roma”. Neste ponto, Rafael não poderia estar mais próximo de Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes, defensores da criação de uma Igreja nacional, portuguesa, lusitana.

Também a confissão e o celibato dos sacerdotes lhe causavam perplexidade ou confusão. Na sua óptica, a confissão, levando o sacerdote a absolver o fiel dos pecados cometidos, torna-o “um ente maior e melhor do que Deus”, e conduz necessariamente à sua deificação. O celibato dos sacerdotes percebe-se mal, torna-se mesmo incompreensível, quando a Igreja diz defender a Família e a tradição nos ensina que a Maternidade é superior à Virgindade, pois Nossa Senhora foi Esposa e Mãe.

É curioso observar que, de um certo ponto de vista, Rafael volta a estar muito próximo de Sampaio Bruno. Para este filósofo, a confissão auricular era o veículo de uma escravatura moral, que vinculava a mulher ao sacerdote; e só a eliminação do celibato imposto aos clérigos faria com que a mulher abandonasse espontaneamente o confessionário, pois esta, por uma questão de pudor e de orgulho, deixaria de confiar ao padre assuntos que ele, presumivelmente, iria comunicar à sua própria esposa.

De outro ponto de vista, a valorização que Rafael Monteiro faz do sacramento do Matrimónio, em detrimento do da Ordenação, identifica-o com Álvaro Ribeiro. É, aliás, nesta linha de pensamento que se insere outra crítica sua apontada à Igreja, motivada pela estranheza que lhe causa o facto de só serem “brancos os caixões das crianças e das pessoas solteiras, e negros os outros, como se o casamento, que a Igreja consagra, fosse pecado, acto impuro – contrário de bondade e de amor”.

Aliás, Rafael Monteiro diz não se entristecer perante a morte, pois, como cristão, vê nela uma forma de redenção. Neste aspecto, Rafael volta a seguir de muito perto a doutrina de Álvaro Ribeiro, e só não compreende que a Igreja “revista todos os actos fúnebres de panejamentos negros e chore o finado”. No seu entendimento infantil, “a Igreja deveria alegrar-se com a morte, se realmente crê, como propaga, ser a morte redenção”.

Perante tudo isto, bem se entende que Rafael Monteiro nos afirme não haver encontrado resposta para as suas interrogações no templo e nos sacerdotes, ao sentir vedado, ou interrompido, o caminho que, na sua infância, o unia a Deus.

Rafael vai, então, procurar essa resposta na filosofia, e de Platão e Aristóteles a Dante e a Hegel, lê quase tudo quanto de verdadeiramente importante há para ler. Agora, busca Deus livremente, e admite mesmo chegar a entrevê-lo aqui e ali, mas sentindo-o sempre longe, inacessível e estranho ao seu sentir de português.

Só a filosofia portuguesa lhe dará a resposta que procurava, só ela lhe mostrará o caminho de regresso a Deus. A leitura contínua e meditada da obra de Álvaro Ribeiro vem a revelar-se fundamental. E Rafael confessa, por fim, ter chorado ao ler o prefácio de A Razão Animada, livro a que simplesmente chama o Evangelho, a Boa-Nova da Pátria.

A leitura da obra-prima de Álvaro parece ter tido o fulgor das revelações. Foi decisiva e definitiva. À parte os escritos sobre os painéis ditos de Nuno Gonçalves, que são mais tardios, a sua obra filosófica virá a lume quase imediatamente, nos três anos seguintes, entre 1958 e 1960, em boa parte nas páginas do jornal 57. Vamos agora falar um pouco sobre ela.

(continua)
* Comunicação apresentada ao colóquio Rafael Monteiro, Sesimbra e a Filosofia Portuguesa, realizado na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 22 de Setembro de 2007.

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