sábado, 30 de junho de 2007

Um novo livro de Paulo Borges

O mais recente livro de Paulo Borges intitula-se FOLIA – MISTÉRIO DE UMA NOITE DE PENTECOSTES, e será lançado na próxima quarta-feira, dia 4 de Julho, pelas 21 horas, na Quinta da Regaleira. A apresentação estará a cargo do escritor Miguel Real e do músico Pedro Aires Magalhães. Pelas 22h00, os presentes serão convidados a assistir à ante-estreia da peça FOLIA pelo «Teatro TapaFuros», com encenação de Rui Mário. A peça estará em cena nos jardins da Quinta da Regaleira de 5 de Julho a 8 de Setembro, quintas, sextas e sábados às 22h e domingos às 20h.

A sombra de Eurídice (2)

Ao triste estado

Frei Agostinho da Cruz

Passa por este vale a primavera,
As aves cantam, plantas enverdecem,
As flores pelo campo aparecem,
O mais alto do louro abraça a hera.

Abranda o mar, menor tributo espera
Dos rios, que mais brandamente decem,
Os dias mais fermosos amanhecem,
Não para mim, que sou quem dantes era.

Espanta-me o porvir, temo o passado,
A mágoa choro dum, doutro a lembrança,
Sem ter já que esperar nem perder.

Mal se pode mudar tão triste estado,
Pois para bem não pode haver mudança,
E para maior mal não pode ser.

Pretextos (2)

Sobre a Lagoa

Isabel Xavier

Há lugares mágicos, inusitados, são lugares de alma. Há paisagens de uma beleza tão inquietante que em nós despertam um novo sentido, para além da visão, do olfacto, do ouvido, do tacto, do paladar, e que a todos conjuga. Há momentos em que em nós se realiza essa viagem inusitada de que as palavras são o testemunho e o sinal.

Falo do que sei e sei bem do que falo. Houve uma vez em que a lagoa foi para mim esse lugar. Era uma manhã pura, a lagoa um espelho de alma que reflectia o céu, nas margens perfilavam-se dezenas de gaivotas muito atentas, completamente fundidas com a paisagem, personagens indispensáveis à atmosfera nítida que ali acontecia.

Comecei por me sentir parte do que me envolvia, mas logo soube que eu também era tudo aquilo e senti nascer em mim a ideia do que via, do que eu agora era, nas palavras de um poema que ali escrevi:

A lagoa, parada, espelho de água
Reflectia no céu não sei que pensamento
A Natureza em redor escutava
Como que em prece e recolhimento.

Quem me dera poder aprender
A suave transcendência do momento
Contento-me de a olhar e ver
Não sei ir além do sentimento.

Nas águas calmas contemplo algo que alguém
Antes de mim já viu talvez sem ver
E o seu sortilégio ali me tem
Cativa da Natureza a renascer.

E é nas águas da lagoa que descubro
Algo de mim que nelas já se espelha
Talvez a paz que há tanto em vão procuro
Ou a tranquilidade de me tornar mais velha.

Se ante o meu olhar se dispôs tanta beleza
Foi para que sentindo-a pudesse mais que vê-la
E devagar me chega esta certeza
De que as palavras me foram dadas p’ra dizê-la.

E é tanta a lucidez desse momento
Que me ocorre um pensamento:
Será esta a fronteira da vida
Ou tão-só o limiar da despedida?

Nunca mais fui a mesma! No entanto, vejo-me cumprindo o ritual dos dias, cegamente, esquecida da singularidade irrepetível de que se faz cada dia que nos é dado viver. Os acontecimentos diários, aquilo a que impropriamente chamamos “vida” (“É a vida…”, até se diz) distraem-nos de nós mesmos, e isso é que é imperdoável… Porque se estivéssemos atentos, acharíamos em nós potencialidades que desconhecemos e se estivéssemos disponíveis, as ocasiões de as acharmos multiplicar-se-iam à nossa volta. Seriam as paisagens que quotidianamente vemos se as olhássemos com o olhar puro das crianças, o olhar do espanto inicial de quem as vê pela primeira vez. E seria de facto a primeira vez porque em nós se teria operado, através da impressão que a paisagem nos causara, a oportunidade de um novo nascimento.

Esta transmutação do ser, este conhecimento através da Natureza, deve ser dito por mera justiça, é algo próprio dos autores portugueses que nós teimamos em desconhecer, apesar de serem quem melhor nos conhece. De Luís de Camões, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa ou Leonardo Coimbra recebemos um legado de valor inestimável de que é exemplo o seguinte escrito:

“Na hora serena do crepúsculo escolhei um lugar bem solitário para a vossa meditação. Cessa o falar diurno, fundindo as vozes num grande mar de Silêncio. Dentro de vós, viviam formas e vultos, as palavras nítidas, as intenções claras. Agora todas as formas morrem lentamente como os relevos continentais que um oceano viera cobrir. Ao grande Silêncio do mundo segue-se o imenso silêncio da alma; como dois mares separados pelo beijo do Sol, um visível da sua luz moribunda, outro de amanhecente e invisível corpo. Pondo o vosso silêncio de acordo com o grande Silêncio das coisas, ponde o coração de acordo com uma grande realidade cósmica; acompanhai, por exemplo, com uma forte tensão de vontade, o sol no declinar da despedida. Olhai bem o disco a afundar-se e imaginai que a vossa vontade o move. Em breve tomareis a sério a vossa ilusão, e, a um profundo abalo de todo o ser, conheceis que sobre o Mistério se vos abriu um novo sentido. É que o Universo é cheio de misteriosa vida oculta, que embebe todas as formas; à mínima inclinação no bom caminho, responde o frémito de infinitos contactos do invisível, enchendo de ser e realidade a quotidiana insuficiência. Como o ar em torno dos corpos se oferece aos estremecimentos do seu espaço, como o éter é dócil às mais longínquas comunicações, o Ser é presente em todo o Universo, pronto a penetrar de afirmação todas as formas que se inquietem.

Erguei as mãos ao Céu e o vosso pensamento seguirá o gesto, pleno de emoção e entusiasmo.” – Leonardo Coimbra, A Alegria, a Dor e a Graça, in Obras de Leonardo Coimbra, Lello e Irmão – Editores, Porto, 1983.

Se a descrição desta experiência em vós encontrou eco, e a quem isso aconteceu, aconselho vivamente a leitura dos autores que referi, para além de muitos outros que não cabe aqui dizer, mas que cada um descobrirá com certeza, tal como há-de achar a sua própria “lagoa”.

Publicado originalmente na Gazeta das Caldas, em 13 de Abril de 2007.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

A sombra de Eurídice (1)

um soneto de Luís de Camões

Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconcerta.

E assi, de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
mostrando que é engano ou fingimento
dizer em que tal descanso mais se acerta.

Porque essa mesma imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
me faz de um certo modo ser presente.

Ditosa é logo a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.

Imagem: retrato de Luís de Camões, por William Blake.

Pretextos (1)

O pecado, a virtude e a graça*
sobre A Razão Animada de Álvaro Ribeiro

Pedro Martins

Prólogo

Álvaro Ribeiro foi discípulo de Leonardo Coimbra, dentro e fora da Faculdade de Letras do Porto. Digo dentro e fora, porque ele beneficiou do ensino esotérico que recebeu na Renascença Portuguesa. Isto liga-o a uma cadeia tradicional restaurada por Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro, que uniu homens como Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Jaime Cortesão, Teixeira Rego ou Aarão de Lacerda.


Álvaro Ribeiro criou a filosofia portuguesa como Colombo partiu o ovo. Ele soube ver na corrente restaurada por Bruno e Junqueiro o reatar de um tradição, a que correspondia um pensamento original, veiculado implicitamente por documentos literários, artísticos, políticos e religiosos, a reclamarem leitura nova.

A língua – o idioma em que o pensamento se reflecte antes de adquirir expressão – é uma das singularidades que justificam a filosofia portuguesa como uma filosofia nacional. A outra singularidade reside no facto de três tradições religiosas – a judaica, a cristã e a islâmica – concorrerem na sua formação. Esta circunstância – que pressupõe uma transmissão de ensinamentos de mestre a discípulo, de boca a ouvido – faz da filosofia portuguesa uma filosofia tradicional.

Álvaro Ribeiro não valoriza muito a tradição islâmica, mas dá grande importância à tradição judaica, ou seja, à Cabala; é, assumidamente, um pensador cristão; mas é muito duvidoso que seja um pensador católico, ao menos do ponto de vista da ortodoxia. Pessoalmente gosto de vê-lo como um dos últimos grandes cabalistas cristãos, que fez a síntese da tradição mística judaica com a doutrina paraclética de Joaquim de Flora, o monge da Calábria que, no século XII, anunciou uma nova e derradeira idade da história da salvação: a Terceira Idade, ou Idade do Espírito Santo, em que a libertação, plena e total, do espírito humano é concebida como uma graça da terceira pessoa da Santíssima Trindade, levando ao desaparecimento da Igreja institucional. A Razão Animada, obra de que me vou ocupar, tal como A Literatura de José Régio, e o prefácio que escreveu para o livro de Conceição Silva sobre os painéis das Janelas Verdes, é um bom exemplo do que acabo de afirmar.


1. A antropologia

A Razão Animada é, como o seu próprio subtítulo indica, um sumário de antropologia. A antropologia é, para Álvaro Ribeiro, uma das três disciplinas filosóficas fundamentais. As outras duas são a teologia e a cosmologia.

A teologia relaciona-se com os mistérios divinos, com a questão da existência e dos atributos de Deus, e não com a da sua essência, que é misteriosa e insondável. A cosmologia procura desvendar os segredos naturais. A antropologia é, essencialmente, a ciência que estuda o homem, e, nessa medida, tem a finalidade de apresentar respostas aos problemas incessantes da sua origem, da sua liberdade e do seu destino. Levanta-se aqui, de imediato, uma questão: o que é o homem?


2. O homem

Álvaro Ribeiro admite, por conveniência dedutiva, que o homem é um composto de espírito, alma e corpo. Na sua essência, o homem é espírito, ou razão, que é o nome que o filósofo dá ao espírito humano, ao passo que inteligência é o nome que dá ao espírito angélico.

Porém, o homem não é um espírito puro, não é uma razão pura. O homem é uma razão animada. É uma razão com alma. É uma razão almada. E é também um corpo.

Como não é apenas razão, ou espírito, o homem é uma razão impura. O homem sabe que é um espírito, que o define na sua essência. Sabe também que esse espírito é livre, mas não é absoluto. Absoluto – absoluto, infinito e universal – é só o Espírito, que é a razão pura. Numa palavra: Deus.

O homem, razão animada, razão impura, tende a unir-se com a razão pura. A ligação, ou religação, a Deus, é a finalidade da arte de filosofar. Escreve o filósofo: filosofar é exercitar a virtude da esperança, é afirmar a fé na mais pura relação do espírito humano com o espírito divino ou, seja, com Deus. A filosofia é essencialmente religiosa.


3. A criação

Não nos basta, porém, dizer aquilo que o homem é. O primeiro problema com que a antropologia se depara é o da origem do homem. Álvaro Ribeiro admite, repetidamente, que estamos perante um mistério: a criação do homem não é susceptível de representação. Mas aceita a doutrina tradicional do criacionismo, segundo a qual o homem foi criado directamente por Deus, à sua imagem e semelhança.

Álvaro Ribeiro recusa o materialismo: não admite a prioridade da matéria sobre a vida. Recusa também o transformismo: o corpo do primeiro homem não é o resultado do aperfeiçoamento do corpo de outro animal. Na verdade, podem ainda ser vistos vestígios de uma realeza perdida nas diferenças que separam o homem dos outros animais. Essas diferenças, ao demonstrarem que o corpo do homem está adaptado a condições superiores à da vida actual, postulam uma descontinuidade, que é um segredo da Natureza e não permite que a génese do corpo humano seja integrada na genealogia transformista.

Álvaro Ribeiro admite, porém, que o homem nem sempre teve a presente configuração anatómica. Nessa medida, professa também o evolucionismo, entendendo-se aqui por evolução o movimento do homem subsequente à queda.


4. A queda

A queda, ao contrário da criação, é susceptível de representação. A tradição diz-nos que Deus criou não só a alma, mas também o corpo, do primeiro homem. Isso leva a crer que o composto humano, formado de um elemento subtil, foi outrora dotado de uma perfeição e de uma santidade que não são observáveis no homem contemporâneo.

O corpo de carne, que é hoje o corpo aparente do homem, é já uma consequência da queda. Com a queda, o que no homem era subtil tornou-se denso. O homem degradou-se, tornou-se um anjo caído. Álvaro Ribeiro disse um dia a Luís Paixão que prezava muito a doutrina dos anjos caídos de Pascoal Martins, português que era simultaneamente judeu, cabalista e maçon.

As três tradições que concorrem para a formação da filosofia portuguesa ensinam que a carne sofre em consequência do pecado original, e que esse pecado consiste na desumanização da Natureza. Note-se que, deste ponto de vista, a carne sofre, não faz sofrer. Difícil é determinar com exactidão onde começa e acaba a carne humana, onde começa e acaba a acção da carne humana. A sua integração total na matéria não pode ser susceptível de figuração projectável no espaço e no tempo. Se, para além do corpo aparente não existisse outro corpo menos corruptível, mais subtil e mais essente, teríamos sérias dificuldades para entender a verdade católica da reencarnação ou da ressureição da carne.

Mas essas três tradições, escreve o filósofo, também ensinam a mediação e a medicamentação a que a humanidade deverá recorrer para se redimir dos sofrimentos que a cercam, condicionam e ameaçam.


5. O pecado original

A noção de pecado original é, porventura, uma das mais difíceis de toda a obra de Álvaro Ribeiro. Mas é também uma das mais importantes.

Convém esclarecê-la como quem faz o diagnóstico uma doença, para se compreender a medicamentação que as três tradições nos propõem. N’A Razão Animada, o filósofo, como diria Sampaio Bruno, é propositalmente obscuro. Nunca chega a desenvolver o assunto. Limita-se a dar algumas indicações fragmentárias, dispersas e discretas, que ao leitor cabe relacionar. Vou levar em conta algumas delas.

A queda, diz ele, significa o conceito de perversão, ou de razão pervertida. Noutra passagem d’A Razão Animada, aproxima a inveja, que considera a entidade mais poderosamente inimiga da vida, e a que já Goethe havia chamado mal radical, do pecado original das inocentes crianças que, por não poderem ver o amor, riem maliciosamente dos namorados e dos amantes. Por último, na mesma obra, tratando das relações entre os Estados, mas remetendo-nos implicitamente para o episódio bíblico de Abel e Caim, Álvaro Ribeiro considera que a inveja produz a agressão fratricida, porque ela é a incapacidade de ver o que está implícito nas leis divinas.

Se concatenarmos estas diversas passagens do livro, talvez seja possível explicitar o conceito de pecado original que o filósofo adoptou. Vimos já que Álvaro Ribeiro assinala uma tendência ao espírito humano: a razão impura tende a unir-se com a razão pura. Ora, a queda foi uma perversão da razão. Como a perversão é um desvirtuamento, ela pode bem ser a inversão daquela tendência do espírito humano. Assim, o que tendia para o alto passou a tender para o baixo. O que estava unido separou-se. A queda resultou de uma cisão e causou uma separação.

O pecado original das crianças inocentes é a inveja: elas não podem ver o amor. Não são capazes de ver o amor. De outra perspectiva, a inveja é a incapacidade de ver o que está implícito nas leis divinas.

Para Álvaro Ribeiro, o amor é uma realidade imaginária, transumana e transcendente, de que podemos ter ou não ter consciência, embora seja certo que esta realidade revela a sua verdade mediante emoções, sentimentos e paixões. A consciência do amor fica, assim, dependente do exercício da imaginação criadora, faculdade gnósica da alma que opera no mundo supra-sensível, no mundo intermediário.

Também a referência às leis divinas é uma alusão ao mundo intermediário, àquele mundo espiritual que, para a Cabala, é o mundo das sefiras. Para Álvaro Ribeiro, a justiça é o conjunto das leis divinas ou, por outras palavras, o reino de Deus. A lei divina é transcendente, pertence à ordem da síntese. O filósofo dá-nos aqui a cifra da décima e última sefira: Malkuth, o Reino, o Espírito Santo.

As sefiras são os atributos de Deus, as manifestações da sua potência criadora. O que nelas parece estar implícito é a santa harmonia dos contrários. O que está na origem da queda adâmica é uma impossibilidade de o homem ver a Deus, ou, pelo menos, de o ver na plenitude da harmonia com que as leis divinas se relacionam entre si. A esta impossibilidade estará subjacente uma incapacidade de imaginar.

Com o pecado original opera-se uma cisão no plano contemplativo. O pecado original não é, pois, um pecado sexual ou sensual. O pecado original é um pecado da imaginação. Mais especificamente, um pecado de magia, como observa António Telmo.

A ideia do pecado original como desumanização da Natureza pode ser entendida a esta luz. A Natureza desumanizada é, antes de mais, e sobretudo, a Natureza que há no próprio homem; é aquela parte do composto humano que está sujeita às leis da geração e da corrupção; aquela parte do homem que, tendo por condição nascer e morrer, lhe confere um suporte existencial; isto é: o seu corpo. O que há de essencialmente humano no homem é a díade superior da tríade: a alma e o espírito. Haverá, assim, desumanização da Natureza sempre que o homem subordinar a sua alma e o seu espírito ao seu corpo. E haverá humanização da Natureza sempre que o homem subordinar o seu corpo à díade superior. O pecado original repete-se constantemente, actualiza-se a cada momento.

Significativamente, n’A Razão Animada, Álvaro Ribeiro diz-nos que a antropologia filosófica pressupõe e propõe as noções de humanização e de desumanização da Natureza, ao considerar os problemas apresentados pela alimentação, pelo vestuário, pelo mobiliário e pela habitação, cabendo-lhe explicar a origem do artifício que realiza beleza nestes domínios e que separa o reino hominal do reino animal.

Como, fora da Natureza, só há beleza na Arte; e como, para o filósofo, não há Arte sem imaginação, torna-se evidente que a mediação e a medicamentação propostas pelas três tradições para bálsamo do sofrimento humano consistem, afinal, no exercitar da imaginação. Aliás, Álvaro Ribeiro fala expressamente numa medicina da imaginação, que é aquilo que diz faltar ao homem colérico.


6. A imaginação

Logo nas primeiras páginas d’A Razão Animada, Álvaro Ribeiro demonstra que a medicina é mediação. A intervenção do médico, diz ele, realiza-se no elemento mediador, no termo médio da tríade significativa do composto humano. Esse termo médio é a alma.

É a alma que faz a mediação entre o material e o espiritual. É a alma que estabelece a harmonia entre o corpo e o espírito, subordinando o primeiro ao segundo. E é a imaginação – entendida como força da alma, e não como mera actividade lúdica; entendida como imaginação criadora, e não como fantasia delirante – o factor gnósico evolutivo que opera essa religação.

Para o filósofo, a razão é, efectivamente, o que distingue e separa a humanidade da animalidade. Mas a imaginação é que é o factor divinizante. A imaginação, como observa Pedro Sinde, liberta a razão do ciclo argumentativo, abrindo-a à noção de absoluto. A imaginação, por um ímpeto anímico, faz com que a razão dê o salto intuitivo por que anseia. A razão torna-se, assim, inteligência no ponto de tangência que estabelece com o divino. Quer dizer, a imaginação – e só a imaginação – é que faz com que o homem – razão animada, mas impura – possa, de novo, estabelecer um laço com Deus – a razão pura. Por isso, escreve o filósofo, cada homem é chamado a contribuir com a sua imaginação para a redenção universal.


7. A autognose

Para Álvaro Ribeiro, a re-união com Deus é o fim, ou a finalidade, da arte de filosofar. Mas o preceito socrático da autognose – o Conhece-te a ti mesmo – é que é o seu princípio.

A filosofia de Álvaro Ribeiro é uma gnose, no exacto sentido que Pierre Riffard deu a esta palavra. Para usar a definição do autor francês, Álvaro Ribeiro concebe a arte de filosofar como um conhecimento salvífico relacionado com os mistérios sagrados, que liberta o espírito humano e tende a fazê-lo regressar ao Uno. A sua filosofia é, assim, uma filosofia operativa e uma filosofia mística.

A reflexão filosófica, diz Álvaro Ribeiro, exerce-se sobre cada personalidade, é uma experiência individual, inconfundível e intransmissível. Através dessa experiência, o homem procura conhecer-se a si próprio como espírito, e busca a libertação individualista da gnosia.

Para alcançar esta libertação, o homem tem de aprofundar a autognose até ao momento de se apreender como energia primordial; pura; não utilizada em trabalho; criadora. Quando o conseguir, o homem já terá deixado aquele estado normal da consciência em que o espírito se dá ao trabalho de exprimir o pensamento por sinais sónicos, e por sinais gráficos. Nesse momento, a razão animada torna-se inteligência e relaciona-se com a razão pura, criando vida espiritual. Nesse momento, em que se alcança a visão beatífica e se dá a iluminação interior, o homem evolui, criando. Evolucionismo e criacionismo são indissociáveis: o homem evolui na medida em que se liberta, e liberta-se na medida em que cria.


8. A evolução

O filósofo caracteriza o processo evolutivo, em que identifica três fases de desenvolvimento da razão. Ao longo deste processo, o homem tem de distinguir as suas volições, os seus sentimentos e os seus pensamentos da liberdade mais pura que lhe é essencial; o homem tem de distinguir a sua personalidade da sua propriedade, separar o eu do meu; e reconhecer que nesse desprendimento se dá um desenvolvimento, e que esse desenvolvimento equivale a uma evolução, que tende para a nudez essencial ou essente.

No termo do processo evolutivo, numa fase em que a razão já não se contenta com os juízos de existência e com os juízos de valor, encontra-se o estudo dos princípios transcendentais. Esse estudo surge, por sua vez, associado ao estudo do absoluto, do infinito e do universal. Estas três realidades não são termos, e situam-se acima da relação e da reflexão.

Temos de recordar que, para o filósofo, só o Espírito, que é Deus, é absoluto, infinito e universal. O que aqui está em causa é já um conhecimento de ordem intuitiva, propiciado pelo exercício da imaginação, pelo qual o homem alcança a visão beatífica e tende a recuperar o estado angélico. Agora, diz-nos o filósofo, o pensamento é livre e a filosofia religiosa. Quer dizer, o espírito humano libertou-se; tornou-se imponderável; os sensos ganharam asas; e a razão animada religou-se ao espírito divino.


9. A graça

A esta luz se compreende que, para Álvaro Ribeiro, o grau espiritual atingido, ou grau de razão, seja apenas o resultado, variável com os temperamentos e os caracteres, do exercício da imaginação. Porém, o filósofo não quis com isto dizer que a evolução dependa somente do homem que, virtuosamente, procura aprofundar a autognose. Só por si, o pecado – que esteve na origem da queda adâmica – e a virtude – cujo exercício é já princípio de redenção – não explicam tudo.

O filósofo propõe então uma doutrina do pecado, da virtude e da graça, que torna possível situar precisamente numa escala ascética e mística todos os momentos da liberdade humana. Como já vimos, a razão impura, no seu movimento libertador, tem de passar por diversos estados, ou graus, para se religar à razão pura, com que tende a unir-se. Este é o terreno da virtude humana.

Mas a razão pura não é alheia à evolução. Há momentos decisivos no movimento evolutivo em que intervém a graça divina. Por isso, diz Álvaro Ribeiro, a purificação da razão humana pelo Espírito Santo está teologicamente referida ao mistério da Santíssima Trindade. É a esta luz que o evolucionismo e o criacionismo se enlaçam e harmonizam no seu pensamento.

Enquanto o evolucionismo descreve, narra e explica a encarnação do homem, ocorrida depois do momento da criação – aqui o filósofo parece referir-se à queda originada pelo pecado primordial – e descreve a via dolorosa pela condição animal, dos mundos infernos aos mundos supernos – aqui pressupõe o exercício da virtude –, o criacionismo interpreta o significado daquele elemento mediador, que relaciona a antropologia com a cosmologia e que por ter valor sacramental acelera o processo de redenção.

A relação da antropologia com a cosmologia pode ser entendida como a relação do homem com a Natureza. Como o filósofo nos dá a entender que essa relação vai no sentido da redenção, devemos supor que se trata, antes de mais, da relação do homem com o que há em si de Natureza. Quer dizer, devemos supor que essa relação condiciona a humanização da Natureza.

O elemento mediador que estabelece essa relação tem valor sacramental. Quer dizer, põe o homem em comunhão com o sagrado. Esse elemento é o anjo, como se depreende de outras passagens da obra de Álvaro Ribeiro. A dispensação da graça divina é mediada por seres espirituais superiores ao homem.

N’A Razão Animada, Álvaro Ribeiro diz-nos que sem auxílio superior o homem jamais expulsará o mal. Desta sorte, é ante o sacramento que cada espírito humano imita ou realiza uma conversão interior que o redime e torna apto a praticar as virtudes teologais.


10. A palavra

Doravante, há que saber como deve o homem agir para fazer com que a graça se manifeste e, desse modo, acelerar a redenção. Nesse sentido, a antropologia de Álvaro Ribeiro é também uma teurgia, quer dizer, é uma arte de produzir efeitos na esfera do divino, com um propósito redentor. A Razão Animada aponta em diversas direcções, consoante os caminhos da vida humana. De entre esses caminhos, o amor e a educação são os principais.

Por estar numa biblioteca, vou procurar seguir um caminho que não me faça sair do lugar onde me encontro, e que é sobretudo um lugar de palavras – lidas, ditas e ouvidas. E, como tenho já muito pouco tempo, vou procurar seguir um caminho que seja um atalho.

Na verdade, só agora me dou conta de que mal falei do papel da palavra na obra de Álvaro Ribeiro; no entanto, a palavra é o elemento fundamental de todo o seu pensamento, a ponto de António Telmo, há exactamente cinquenta anos, ao fazer a recensão de A Razão Animada, no jornal 57, ter escrito que se fosse demonstrado que a filosofia não é uma arte da palavra, todas as restantes teses de Álvaro Ribeiro cairiam pela base.

Para que a graça se manifeste, Álvaro Ribeiro considera necessário que haja um apelo do homem – do homem que ama e que sofre – ao Espírito Criador. Esse apelo é sempre uma oração, e por isso não prescinde nunca, ao menos num primeiro momento, do poder das palavras; mas é uma oração num sentido já tão amplo, que não tem de ser uma reza; e na maior parte das vezes não o será.

Curiosamente, no mesmo ano em que Álvaro Ribeiro editou o seu primeiro livro, Agostinho da Silva publicou um opúsculo, por sinal apreendido pela polícia política de Salazar, em que nos diz que uma biblioteca e uma escola, tal como um homem, são templos de Deus.

Hoje é frequente ouvir-se dizer que uma imagem vale por mil palavras, para se tentar justificar o prestígio da fotografia, do cinema e da televisão. Quem o diz parece, no entanto, esquecer-se de que, ao dizê-lo, está a admitir que são precisamente essas palavras que dão à imagem a medida do seu valor, e não o contrário. A palavra, diz-nos Álvaro Ribeiro, é, sem dúvida, de todos os símbolos o mais verdadeiro. Ela confere significação a tudo quanto é audível, visível e tangível, e assim torna possível a educação e a evolução da humanidade.

N’A Razão Animada, que, curiosamente, foi publicada no mesmo ano em que a televisão surgiu em Portugal, o filósofo ensina que a palavra, e só a palavra, pode ser estímulo para a imaginação, que só o encanto da palavra exterior, ou da palavra interior, pode libertar as possibilidades latentes na alma humana. A imaginação artística é, para Álvaro Ribeiro, de todas as faculdades humanas aquela que anuncia, prepara e manifesta todas as outras, e é por isso o factor primordial do trabalho da educação. Claro que, quando fala de imaginação artística, ele está aqui a pensar também, e sobretudo, nas artes da palavra, muito embora esteja ciente de que a imaginação, quando aplicada a estas artes, não goza do respeito que lhe é conferido quando estão em causa as artes plásticas.

Perante isto, o filósofo defende que tudo o que pretendermos ensinar à criança há-de ser em estilo narrativo e em narrativas hão-de ser todos os ensinamentos que lhe desejarmos transmitir. Na verdade, o conto é, nas primeiras idades, o melhor, senão o único, processo de dilatar o campo da consciência do ser humano. Esta doutrina é altamente nobilitante para as bibliotecas públicas que, como é o caso desta, não se limitam a pôr livros à disposição de quem a frequenta, mas promovem regularmente sessões de leitura de contos às crianças.

Na verdade, é através do conto que a credulidade da criança assimila os conhecimentos indispensáveis ao seu descobrimento do mundo, estabelecendo o paralelo entre a imaginação e a inteligência, entre o imaginado e o inteligido, entre falsidade e realidade. Deste modo, a criança chega, por um lado, à fase de crítica que pressupõe perfeito uso da razão; mas, por outro, tende a aceitar a perenidade do maravilhoso em todas as condições da vida humana, que lhe são já apresentadas na tangência do prodígio, do milagre e do mistério. Este ponto é absolutamente decisivo, pois, para o filósofo, todas as outras faculdades humanas podem ser exercitadas em consequência do progresso da razão prática, estética e teórica, mas a imaginação cessa de progredir depois da adolescência, excepto nos homens que forem chamados a superior destino por vocação artística, filosófica ou religiosa.


Álvaro Ribeiro tem sido injustamente – eu diria ignobilmente – acusado de ser um pensador reaccionário; mas bastará ter presente esta sua preocupação com a cultura da imaginação para podermos dispensar quaisquer outros desmentidos. Na verdade, o filósofo propõe-nos uma pedagogia e uma didáctica que, a serem aplicadas pelo sistema de ensino, poderão generalizar a libertação do espírito humano pelo exercício da imaginação. Nesse sentido, o seu pensamento parece apontar para uma democratização da virtude que está já muito perto do ideário social, simultaneamente religioso e político, democrático e aristocrático, que havia sido profetizado por Fernando Pessoa em 1912, na revista A Águia, como corolário futuro de uma civilização prodigiosa que a nova poesia portuguesa deixava então entrever.

Segundo a lição do filósofo, chama-se inspiração aquela graça que o artista recebe depois de muito ter exercitado a imaginação. Ao exercitar a sua imaginação, o artista faz a sua oração, e Deus responde, ou corresponde, ao seu apelo; e recompensa-o. Para Álvaro Ribeiro, este arquétipo do homem superior é o modelo a realizar pelo processo educativo, entendido como um processo evolutivo e libertador.

Tal como o seu condiscípulo e amigo Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro propõe-nos uma escola que seja um templo de Deus, onde todos, mestre e discípulos, sejam artistas em demanda do génio. Tal como o seu condiscípulo Agostinho, Álvaro propõe-nos também uma biblioteca que seja um templo de Deus, de forma a que os homens leiam e ouçam para desenvolver a imaginação e aperfeiçoar a inteligência, para alcançar aquela libertação do espírito que só a dilatação de todas as faculdades da alma concede, e a que se pode dar o nome de êxtase.

Assim seja.

* Comunicação apresentada ao colóquio “A Razão Animada, o 57 e a Filosofia Portuguesa”, realizado em 14 de Abril de 2007, na Biblioteca Municipal de Sesimbra.