sábado, 30 de junho de 2007

Pretextos (2)

Sobre a Lagoa

Isabel Xavier

Há lugares mágicos, inusitados, são lugares de alma. Há paisagens de uma beleza tão inquietante que em nós despertam um novo sentido, para além da visão, do olfacto, do ouvido, do tacto, do paladar, e que a todos conjuga. Há momentos em que em nós se realiza essa viagem inusitada de que as palavras são o testemunho e o sinal.

Falo do que sei e sei bem do que falo. Houve uma vez em que a lagoa foi para mim esse lugar. Era uma manhã pura, a lagoa um espelho de alma que reflectia o céu, nas margens perfilavam-se dezenas de gaivotas muito atentas, completamente fundidas com a paisagem, personagens indispensáveis à atmosfera nítida que ali acontecia.

Comecei por me sentir parte do que me envolvia, mas logo soube que eu também era tudo aquilo e senti nascer em mim a ideia do que via, do que eu agora era, nas palavras de um poema que ali escrevi:

A lagoa, parada, espelho de água
Reflectia no céu não sei que pensamento
A Natureza em redor escutava
Como que em prece e recolhimento.

Quem me dera poder aprender
A suave transcendência do momento
Contento-me de a olhar e ver
Não sei ir além do sentimento.

Nas águas calmas contemplo algo que alguém
Antes de mim já viu talvez sem ver
E o seu sortilégio ali me tem
Cativa da Natureza a renascer.

E é nas águas da lagoa que descubro
Algo de mim que nelas já se espelha
Talvez a paz que há tanto em vão procuro
Ou a tranquilidade de me tornar mais velha.

Se ante o meu olhar se dispôs tanta beleza
Foi para que sentindo-a pudesse mais que vê-la
E devagar me chega esta certeza
De que as palavras me foram dadas p’ra dizê-la.

E é tanta a lucidez desse momento
Que me ocorre um pensamento:
Será esta a fronteira da vida
Ou tão-só o limiar da despedida?

Nunca mais fui a mesma! No entanto, vejo-me cumprindo o ritual dos dias, cegamente, esquecida da singularidade irrepetível de que se faz cada dia que nos é dado viver. Os acontecimentos diários, aquilo a que impropriamente chamamos “vida” (“É a vida…”, até se diz) distraem-nos de nós mesmos, e isso é que é imperdoável… Porque se estivéssemos atentos, acharíamos em nós potencialidades que desconhecemos e se estivéssemos disponíveis, as ocasiões de as acharmos multiplicar-se-iam à nossa volta. Seriam as paisagens que quotidianamente vemos se as olhássemos com o olhar puro das crianças, o olhar do espanto inicial de quem as vê pela primeira vez. E seria de facto a primeira vez porque em nós se teria operado, através da impressão que a paisagem nos causara, a oportunidade de um novo nascimento.

Esta transmutação do ser, este conhecimento através da Natureza, deve ser dito por mera justiça, é algo próprio dos autores portugueses que nós teimamos em desconhecer, apesar de serem quem melhor nos conhece. De Luís de Camões, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa ou Leonardo Coimbra recebemos um legado de valor inestimável de que é exemplo o seguinte escrito:

“Na hora serena do crepúsculo escolhei um lugar bem solitário para a vossa meditação. Cessa o falar diurno, fundindo as vozes num grande mar de Silêncio. Dentro de vós, viviam formas e vultos, as palavras nítidas, as intenções claras. Agora todas as formas morrem lentamente como os relevos continentais que um oceano viera cobrir. Ao grande Silêncio do mundo segue-se o imenso silêncio da alma; como dois mares separados pelo beijo do Sol, um visível da sua luz moribunda, outro de amanhecente e invisível corpo. Pondo o vosso silêncio de acordo com o grande Silêncio das coisas, ponde o coração de acordo com uma grande realidade cósmica; acompanhai, por exemplo, com uma forte tensão de vontade, o sol no declinar da despedida. Olhai bem o disco a afundar-se e imaginai que a vossa vontade o move. Em breve tomareis a sério a vossa ilusão, e, a um profundo abalo de todo o ser, conheceis que sobre o Mistério se vos abriu um novo sentido. É que o Universo é cheio de misteriosa vida oculta, que embebe todas as formas; à mínima inclinação no bom caminho, responde o frémito de infinitos contactos do invisível, enchendo de ser e realidade a quotidiana insuficiência. Como o ar em torno dos corpos se oferece aos estremecimentos do seu espaço, como o éter é dócil às mais longínquas comunicações, o Ser é presente em todo o Universo, pronto a penetrar de afirmação todas as formas que se inquietem.

Erguei as mãos ao Céu e o vosso pensamento seguirá o gesto, pleno de emoção e entusiasmo.” – Leonardo Coimbra, A Alegria, a Dor e a Graça, in Obras de Leonardo Coimbra, Lello e Irmão – Editores, Porto, 1983.

Se a descrição desta experiência em vós encontrou eco, e a quem isso aconteceu, aconselho vivamente a leitura dos autores que referi, para além de muitos outros que não cabe aqui dizer, mas que cada um descobrirá com certeza, tal como há-de achar a sua própria “lagoa”.

Publicado originalmente na Gazeta das Caldas, em 13 de Abril de 2007.

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