sábado, 29 de dezembro de 2007

Pensando à bolina (13)


A flor da Saudade é a Açucena

Pedro Sinde


Lilium Album. The book of plants, Basilius Besler
Quem assim o diz é Isidoro de Barreyra, um desses monges secretos que Sampaio Bruno tanto gostava de repescar, perdido no labirinto estreito de uma qualquer biblioteca. O livro em que o diz tem o seguinte cativante título: Tratado das significaçoens das plantas, flores, e fruttus, que se referem na sagrada escrittura, tiradas de divinas, e humanas letras, com suas breves considerações.
Isidoro de Barreyra, foi monge da Ordem de Cristo em Tomar, no Convento de Cristo. Este livro interessantíssimo é de 1622. Também Camilo o refere a propósito da Saudade.
Os saudosistas deviam atentar neste facto interessante que é o de haver uma flor que é o símbolo da Saudade.
Se seguirmos atentamente a explicação de Isidoro de Barreyra veremos que há ali uma cifra. Em primeiro lugar o monge começa por nos apresentar a Açucena na sua significação bíblica como símbolo de pureza. Aparece, por essa razão, ao lado da Virgem nas representações da anunciação. De seguida, muda o discurso e, ao contrário do que acontece no resto do livro, refere a significação da Açucena "entre nós", pressupõe-se que querendo dizer entre os portugueses, mas pode ter outra significação mais funda.

Ora, entre nós, a Açucena significa não a pureza, mas a Saudade. A justificação que o monge dá para isso é muito interessante, sobretudo porque não é exacta. Quer dizer, Isidoro de Barreyra explica que a Açucena tem a característica de florir mesmo quando cortada ou arrancada da raiz e colocada num recipiente com água. Ora, isto é exacto, o que não é exacto é que a Açucena seja a única flor com esta propriedade e se essa é a razão para que seja ela a simbolizar, em vez de outra, a Saudade, então há aqui um erro estranho. É por esta razão que me parece que aqui se esconde qualquer coisa de muito importante e que eventualmente estaria ligado com a Ordem de Cristo naquela altura. Um observador tão fino, como era Isidoro de Barreyra, nunca cometeria um erro tão grosseiro; o erro é uma cifra.
Do meu ponto de vista, Isidoro de Barreyra está a cifrar algo muito importante ligado à tradição portuguesa e à Ordem de Cristo. A forma pela qual ele apresenta o assunto ali no livro, dá a entender que a Açucena representa exotericamente a pureza na iconografia Católica, mas esotericamente representa a Saudade, na tradição portuguesa. Isidoro de Barreyra diz assim: "E ainda que muitos attribuão isto à puresa da Virgem, com tudo segredo tem pintaremse as Cessens [Açucenas] só neste mysterio, & não em outros."
Tudo isto me parece ligado à noção de exílio. No próximo Pensar à bolina procurarei explicar, se vi bem, qual a razão.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Vox populi, vox Dei (2)

Fia-te na Virgem e não corras...

Gil da Gama

À superfície, parece tratar-se de um adágio com fácil interpretação: o melhor é fazeres o que tens a fazer e deixares-te de "crendices". Mas isso é apenas à superfície, porque se olharmos bem veremos que este adágio é o que é mas ao contrário do que é; vou-me explicar. Basta que invertamos a ordem dos factores, que, neste caso, não tem nada de arbitrário, e logo veremos de outro modo: não corras, fia-te na Virgem. Assim visto, estamos perante algo de uma natureza diferente, equivalente a outros adágios do mesmo tipo e que demonstram a forte confiança do povo português no sobrenatural: Mais vale quem Deus ajuda, do que quem muito madruga ou O pouco com Deus é muito, o muito sem Deus é nada. Mas como no povo português convivem duas almas em simultâneo, uma idealista e outra realista, uma que o faz acreditar no fado e outra que o faz ver que está no mundo para agir, temos de encontrar um ponto em que as duas almas, opostas só na aparência, se reúnam, aquele ponto em que o português possa voltar a dizer como disse Pessoa:

O homem e a hora são um só

Quando Deus faz e a história é feita.

Aqui, é Deus o motor imóvel e o homem é aquele que, sendo movido, faz mover; é o construtor de pontes, restaurou a sua condição primordial de pontifex.
Em qualquer um destes adágios é patente a ideia de que a acção humana desligada do divino é "nada"; não há um convite à inacção, mas apenas a ideia de que aquilo que o homem tem, pouco ou muito, se for acompanhado do divino, é "tudo". Se é verdade que Deus escreve certo por linhas que ao homem parecem tortas, então aceitando a aparente sinuosidade com que se tece cada um dos nossos destinos, poderemos entrever a grandiosidade de um destino maior que se cumpre livremente para glória do mais alto. Assim possamos dizer: Fia-te na Virgem e corre…

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Escaparate (3)


Contos da Coluna do Meio,
de João Rêgo

Pedro Martins

Desaparecido, de forma trágica e prematura, num acidente de aviação ocorrido em Julho deste ano, pôde, porém, felizmente João Rêgo deixar-nos um apreciável testemunho espiritual no livro intitulado Contos da Coluna do Meio, onde se recolhem textos publicados na imprensa local de Montemor-o-Novo, onde o escritor residiu entre 1987 e 2005.

As linhas mestras deste pequeno volume tornam patente a influência da filosofia portuguesa – a cujo grupo pertenceu – no trajecto filosófico do autor: a sugerida crença no poder criador e movente do pensamento reflectido na palavra ou a confiança reiterada na interventora misericórdia divina são assomos autênticos de esperança e de caridade nas breves páginas destes Contos da Coluna do Meio, na linha do pensamento de Álvaro Ribeiro, filósofo a quem João Rêgo havia consagrado a elaboração de uma importante antologia (A Medicina em Álvaro Ribeiro, Edições Tomé Natanael, 1992).


Com excepção do derradeiro escrito – que, aliás, confere o título à recolha –, todos os restantes são dedicados a personagens femininas, numa exaltação nobilitante da figura da mulher, que se furta aos preconceitos feministas para implicitamente os repelir. Para tanto, o autor recorre, não raras vezes, ao cânone literário universal, lançando mão de narrativas mitológicas, históricas e ficcionais, cuja exemplaridade é trazida à evidência por mor de uma exegese lúcida e inteligente. A tudo isto acresce a mestria de um comunicador dotado, que, dirigindo-se a um público heterogéneo e presumivelmente não iniciado, terá sabido, por certo, motivar nos leitores a apetência pelos grandes textos clássicos, a partir de uma pessoalíssima visão filosófica, a que a força sugestiva do título dado ao livro oferece esclarecedora coloração.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Vox populi, vox Dei (1)

Os adágios e a sabedoria perene

Gil da Gama

Nogueira, Árvores de Portugal (Guia FAPAS)
Nestes tempos do fim, o povo assume uma importância inaudita. Os sábios são cada vez em menor número e, cautelosos, são cada vez mais reservados. Na ausência dos sábios, que são o intelecto activo de um povo, resta-nos a memória que guarda os seus ditos ou adágios. Ao povo está reservada a nobre tarefa de ser o guardião da sabedoria.
Os adágios não pertencem a uma época, pelo contrário, são a expressão da condição humana. Podem ser comparados aos Salmos, ambos representam o homem universal. Ninguém conhece a origem dos provérbios; vindos do dia dos tempos primordiais, providencialmente guardados, como numa arca de Noé, no seio do povo, dirigem-se, pois, ao ser humano decaído, dando-lhe preciosas indicações para a sua redenção.
Nos adágios escondem-se sempre vários sentidos latentes, dos quais o povo usa, e bem, apenas o primeiro, o mais evidente.
Os desdenhosos e os invejosos usam e abusam do adágio que diz: Deus dá as nozes a quem não tem dentes. A interpretação imediata deste provérbio diz-nos que a sorte parece mal distribuída, revela-nos o descontentamento daqueles que vêem a desordem do mundo, daqueles que sempre estão descontentes. Uma interpretação mais funda leva-nos, porém, para outro lado: a noz é o sinal do conhecimento, dentro da casca dura está o fruto bem protegido. É conhecida a impressionante analogia entre a noz e o cérebro, basta ler as formas, para que logo nos ocorra a bela expressão de Jacob Boehme, que dá título a um dos seus mais curiosos livros: De signatura rerum, Sobre a assinatura presente nos seres, em tradução livre.
A noz, sendo a expressão do conhecimento verdadeiro, bem protegido, é entregue por Deus àqueles que não têm dentes, porque só esses não o trituram, não o desfazem, não se podem apoderar dele; dar nozes a quem tem dentes, seria como dar pérolas a porcos ou, para lembrar um outro provérbio mais esquecido: comida fina em corpos grossos faz mal aos ossos. O povo português exprime um saber espontaneamente aristotélico, sabendo reconhecer que cada coisa tem o seu lugar natural e, por isso mesmo, cada coisa procura o seu lugar natural. Desejar um lugar que não é o da sua natureza é a fonte da inveja e da desordem patente no mundo, pois hoje todos querem o que os outros têm e ninguém ama aquilo que tem.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A sombra de Eurídice (5)

Morte e Ressureição

Carlos Aurélio

Contigo, minh’alma, desci
Até aos confins da incompreensível dor,
Por abruptas feridas abertas de cor,
Em ti me perdi e me achei de memória.
Memória, essa agulha que cose, essa faca que corta
Coisas e loisas, vidas, lixo e chicória,
Esse sangue corrido, fendido,
Essa voz ouvida, enrouquecida,
Memória, esse silêncio que engendra a vida já morta.

Fui contigo de mão dada
Visitar a dor, cego e seco em meu desalento,
Desci sem lágrimas o declive que sugava
Até às goelas escancaradas, ó infernal tormento!
Desci, desci sempre,
Empurrado por mim, puxado p’lo diabo,
Até que, farto, estanquei e disse: “Aqui acabo!
Já não vejo céu que me levante.
Onde és, meu Deus?...Como vou adiante?”


Chamei-te, ó pedra surda,
Ainda vi luz e orvalho ─ estou a lembrá-lo.
Ansiei por ti, ó morte, sombra da árvore bendita,
E também te vi cansada, desdita.
Falavas com o vento, ias tu consolá-lo.
Disse adeus e abracei-vos, ó céus,
Juntei as mãos e pus-me todo dentro delas,
Ergui-as já secas, ardendo lúgubres como velas,
E assim desci, consumido em mortalhas e véus.

Gritei por ti, ó andorinha fugidia,
E só vi penas negras, no céu as primeiras
Asas que, com o meu Anjo me alembravam
As preces de Jesus no Horto das Oliveiras.
Subi, subi sempre,
E clamei por vós, gente irmã,
Olhares tardios do amor abandonado,
Rostos baços de vida vã,
Calvário sem Domingo ressuscitado.

Até que por ti, ó Espírito, então reconheci:
Morri e, enquanto anoitecia, já era o sol que se erguia.
Ei-lo pujante, hóstia solar, a verdadeira,
Vi-o a levantar-me da cama derradeira.
Contigo minh’alma então sim, vivi,
E perguntei aos choupos e vendavais:
“Que milagre é este? Morro de pé, bem o sei!”
E eles assim mudos, silentes e sem ais,
Me disseram: “É a tua voz que te acorda,
a do sol,
a do teu Cristo e teu Rei!”

1 de Dezembro de 2007

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Pensando à bolina (12)

As mil e uma noites de Dinarzade (I)

Pedro Sinde

- Todos pensam que a heroína d'As Mil e uma Noites é a bela e sábia Xerazade, mas não é; ou melhor, não é inteiramente.

Foi assim que Dinis me começou a falar da leitura que tem feito desta obra magnífica. Fiquei intrigado e perguntei-lhe quem era, então, o herói, se seria o Sultão.

- Não, o Sultão é levado pela história; a vida de Xerazade parece estar nas suas mãos e, no entanto, ele é que está nas mãos dela. A verdadeira heroína é a irmã de Xerazade: Dinarzade. Vou procurar explicar-te porque penso assim. Como sabes, o Sultão, traído pela mulher que lhe foi infiel, para não voltar a ser traído, resolve a cada dia desposar uma nova mulher, mandando-a matar no dia seguinte, depois da noite de núpcias.

Xerazade, querendo libertar o reino e o próprio Sultão de tal infelicidade, oferece-se ela mesma ao Sultão. Tem um plano em mente. Depois de casada e passada a noite de núpcias, mas antes de o sol nascer, começaria a contar uma história ao Sultão, mas por tal modo que a tivesse de interromper com o nascer do dia, altura em que o Sultão partiria para os seus afazeres. Teria, no entanto, de a interromper num ponto tal que o Sultão, levado pelo enredo, isto é, enredado, a poupasse esse dia para ouvir o final da história antes da manhã seguinte. Para executar este plano, necessita, no entanto, da colaboração de alguém que a acorde antes do sol nascer e lhe peça "desinteressadamente" para continuar a história. À sua irmã, Dinarzade, cabe essa missão grave de, todos os dias, a acordar antes do nascer do sol e, com ela, o Sultão, que partilhava o leito com Xerazade.
Dinarzade é, portanto, aquela a quem cabe estar vigilante e, simultaneamente, ser o estímulo para o início de cada história. Ela é a imagem do motor imóvel, age sem agir; é ela quem acorda a irmã e o Sultão, mas quem a acorda a ela, Pedro? Ela é que é o princípio do movimento.
Percebes agora porque é que me parece que a verdadeira heroína é a Dinarzade? Ela é o espírito da irmã, que é, por sua vez, a alma do Sultão. Para que as histórias de Xerazade actuem sobre nós como actuam sobre o Sultão devemos descobrir, de algum modo, a Dinarzade em nós, esse espírito que todos os dias nos acorda para a história que temos na nossa alma e que vemos desenrolar-se no mundo fora de nós. Mas as mil e uma noites só começam aqui, há mais mistérios essenciais que gostava de conversar contigo. Isso terá de ficar, no entanto, para outro dia, porque agora mesmo tenho de ir embora e ver que história me conta Xerazade neste dia.

E assim fiquei eu, como o Sultão, inquieto, à espera que o Dinis me fale de outros "mistérios essenciais" guardados n'As mil e uma noites.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Sampaio Bruno

(30 de Novembro de 1857 – 11 de Novembro de 1915)

Só um homem em Portugal mostra compreender: Sampaio Bruno.
Fernando Pessoa

terça-feira, 27 de novembro de 2007

No signo do 7 - 150 anos de Filosofia Portuguesa

Sesimbra, 24 de Novembro de 2007. Pedro Sinde e António Telmo no lançamento de Contos Secretos.
A anteceder o colóquio A Filosofia Portuguesa Hoje, com que se encerrou o ciclo comemorativo dos 150 anos da Filosofia Portuguesa (realizado, entre Março e Novembro, na Biblioteca Municipal de Sesimbra), teve lugar, no passado sábado, dia 24, o lançamento do livro Contos Secretos, de António Telmo. A obra foi apresentada por Pedro Sinde, numa sessão que contou ainda com a presença do autor, bem como do pintor Espiga, que ilustrou o volume, e de Manuela Morais, que, com a chancela da Tartaruga, o editou. A fotografia foi-nos gentilmente cedida por João Aldeia, autor do blogue Sesimbra.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Bellum sine bello


Carta a Pedro Sinde

António Cândido Franco

Évora, 20 de Novembro de 2007


Caríssimo Pedro Sinde

Peço-te antes de mais desculpa da demora desta carta, que há muito te devia em resposta a outra tua de 7 de Julho. Encurtando razões, digo-te que a necessidade e a urgência de te responder nunca se ausentou do meu espírito e é com muito gosto que estou tentando responder às tuas perplexidades.

Começo pelo surrealismo. O surrealismo tem de ser encarado a partir da sua etimologia e a partir das suas manifestações. A etimologia das palavras não nos pode servir nuns casos e noutros não; em todos, ela ilumina o sentido da palavra, que pode estar mais ou menos obscurecido pelo tratamento humano mas nunca de todo ausente. No caso estamos de acordo que a etimologia de surrealismo nada tem a ver com a ideia do que está por baixo do real, mas antes com o que está para ou por cima. É esse inegavelmente o sentido original do surrealismo e é esse que se encontra nas suas obras mais representativas e importantes. Caso a tradução portuguesa da palavra não te agrade, podes escolher o termo sobre-realismo, que foi usado por muitos em portuguesa língua, entre eles por Agostinho da Silva.

Quanto à confusão entre ‘su’ e ‘sub’, e até em língua francesa entre o ‘sur’ e o ‘sous’, quer dizer, a confusão entre ‘surrealismo’ e ‘sub-realismo’, não a sinto como dizes. Se eu aceitasse tal confusão, teria de aceitar também que ela se estabelece, pela proximidade fonética, entre ‘sob’ e ‘sobre’. Quer dizer, não veria diferença entre palavras como ‘sobrenatural’ e ‘subnatural’. Ora não é isso que acontece no meu caso e creio que no teu também. Sei distinguir, quer no plano do sentido, quer no plano dos sons, entre ‘sob’ e ‘sobre’, como sei distinguir em língua francesa entre ‘sur’ e ‘sous’ e no caso português entre ‘surrealismo’ e ‘sub-realismo’. A distinção entre os fonemas, de quaisquer fonemas, é subtil, de pormenor, mas existe. Será que tu confundes entre trevo e treva? Entre nada e nata? Não creio. É por isso que o argumento do meu ponto de vista é forçado. Tu queres teimosamente ter razão e para isso recorres a essa confusão, fácil de fazer mas difícil de aceitar. Nestas coisas não vale ser teimoso e por isso te peço que reconheças o valor inato e original que a palavra tem, quer na portuguesa língua, quer na francesa.

Por tudo o que vai implicado no que acabo de dizer, a descida aos infernos de que falo a propósito do surrealismo deve ser encarada como uma procura dos arcanos e não como um simples entretenimento turístico à procura do abjecto, com viagem de ida e volta. Ela concorda com tudo o que dizes na tua carta sobre o assunto. Se dei a entender outra coisa, a culpa não é do surrealismo mas apenas da minha expressão insuficiente, que não conseguiu estar à altura das ideias de que falava.

Quanto às relações da Filosofia Portuguesa e do surrealismo já percebeste pelas palavras do Ruy Ventura que aquilo que dizes acerca da primeira podes dizê-lo do segundo. O surrealismo nunca pretendeu ser um movimento, mas a causa mesma do movimento, para usar as tuas palavras. Basta pensares num exemplo tão comezinho como este. Natália Correia quando pretendeu fazer uma Antologia do surrealismo português não foi a Cesariny, a António Maria Lisboa ou aos possíveis precursores destes; recuou aos primeiros momentos literários portugueses da Idade Média. O surrealismo está fora do tempo; pertence à eternidade. Estamos na verdade a falar do que está acima do real. Trata-se dum caso muito sério. O surrealismo não envelhece; é uma ideia que anima desde e para sempre a vida.

Por fim, vejamos o que chamas o ataque de Mário Cesariny à Filosofia Portuguesa. Não sei se trata dum ataque ou tão-só duma incompreensão ou até, mais simples, dum equívoco. Seja como for, também essas palavras me incomodaram quando, há muitos anos, pela primeira vez as li. No prefácio que escrevi para as poesias completas de Mário Beirão, e publicado pela Imprensa Nacional em 1996, abordo a questão de raspão. Assim como assim, o que aí digo a propósito do autor de O Último Lusíada pode ser alargado às relações de Cesariny com a Filosofia Portuguesa.

Uma coisa é certa, não me esqueço que uma ponte liga duas margens em ambos os sentidos. Tanto me incomodam as incompreensões para com o surrealismo e as suas obras como as injustiças para com a Filosofia Portuguesa e os seus autores. Recebe o abraço amigo de quem muito te estima e te escuta e lê sempre com o maior prazer e atenção

A. Cândido Franco

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Pensando à bolina (11)

A Casa Albano

Pedro Sinde

Na terra onde vivo há, como em todas as terras, uma casa da sorte onde se vende lotaria e coisas afins, onde se vende a "sorte". O lema destas casas é o de que só sai a sorte a quem joga.
No jogo da vida estamos todos envolvidos, queiramos ou não, joguemos ou não, porque se não jogamos a vida, é ela que joga connosco. Muitas vezes cremos que somos nós a jogá-la e é ela, no entanto, quem joga em nós.
Nunca gostei, porém, da comparação da vida com o jogo, porque sempre me pareceu entrever aí o perigo de a tomarmos por uma coisa lúdica (hoje todos parecem ter como fim último da vida a diversão!), quando o papel do homem é o de ser uma ponte entre o natural e o sobrenatural. Para dizer isto bem dito, nem devia falar em "natural", pois nada na vida o é, só os nossos olhos pobres precisam do descanso da luz sobrenatural para se refugiarem na sombra do natural; assim é que chamamos "natural" àquela parte do sobrenatural com a qual convivemos diariamente. Se víssemos a vida como sobrenatural sempre, isso implicaria uma mudança radical no sentido das nossas vidas; não estamos, todavia, interessados em mudanças destas.

Mas voltemos à Casa Albano; nessa casa onde se vende a taluda, o totoloto, o totobola, o euromilhões e tudo o que se possa pensar nesta gama, também se faz uma outra coisa muito curiosa. Nos seus grandes vidros afixam-se, mesmo ao lado dos números premiados, os anúncios necrológicos; de tal modo que, nas suas montras, as mesmas pessoas procuram os números para ver se lhes saiu a "sorte grande" e o nome do último "sorteado", levemente deliciadas com a certeza de que nunca verão ali o seu nome.

Se a taluda sai a poucos, já aquela outra sorte, essa sim grande, imensa, tremenda, sai a todos. Vejo na Casa Albano, de mãos dadas, a imagem paradoxal da pródiga dama segurando o corno da abundância e a ceifeira terrível de gadanha na mão; ambas sorriem e os transeuntes não sabem se serão os próximos a ganhar o sorteio ou a ser sorteados.

Uma ligação estranhamente profunda parece haver entre ambas, como se filhas do mesmo pai, como se divisão de uma mesma energia, como se dois extremos que se tocassem; enfim, uma pescadinha de rabo na boca, que é o nome que o povo português dá à hermética serpente Ouroboros.

Ao passar ali todos os dias, só eu pareço, no entanto, não querer nada nem com uma nem com outra, discretamente acelerando o passo no outro lado da rua.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Pensando à bolina (10)

Da não existência da filosofia portuguesa

Pedro Sinde

Não há filosofia portuguesa. É um dado evidente. É quase um facto. Basta olhar para os autores da filosofia portuguesa para ver que ela não existe. Vejamos.

Sampaio Bruno é um gnóstico que trata as ideias platónicas como Aristóteles estudaria uma planta (não nos fala ele na eclosão da ideia na alma do génio?); e, como se não bastasse, acredita que a humanidade inteira será um dia o messias, o D. Sebastião esperado.
Leonardo Coimbra rejeita todos os sistemas de filosofia como formas de "cousismo", isto é, como momentos de paragem do movimento e propõe uma filosofia que é a sua própria negação: uma filosofia do movimento, em que cada nova forma supera a anterior. Deste modo recusa implicitamente a existência de sistemas, a não ser como momentos provisórios.
Álvaro Ribeiro propõe uma filosofia que é uma teologia, um caminho para Deus, um caminho de santidade; os que só vêem à superfície chamam-lhe, para o denegrir, neo-aristotélico, não vêem que isso é apenas a capa sob a qual se esconde um pensamento tremendamente revolucionário.
José Marinho é um místico de uma lucidez extrema, mas de uma lucidez que tem pudor em mostrar-se como tal e, por isso, nunca edificaria um sistema.
Agostinho da Silva, enfim, foi o que foi, ninguém sabe o que foi e, por isso, chamam-lhe comunista, monárquico, anarquista ou franciscano, budista, taoísta. Tudo isso cabia na sua alma imensa, mas ele mesmo não era nada disso; acreditava no quinto império e entendia que os portugueses tinham por missão mostrá-lo ao mundo.

É por isso que há dois tipos de inimigos da filosofia portuguesa: alguns dos que dizem que ela existe e todos os que dizem que ela não existe. Os primeiros tentam encontrar um sistema e teses que dêem unidade à diversidade magnífica, como se dissessem que todas as plantas têm tronco; os segundos comparam-na com o pensamento sistemático alemão ou francês e não encontram nenhum sistema de filosofia português; e têm razão, porque eles chamam filosofia precisamente ao que vêem na Alemanha, na França, em Itália e, agora muito em voga, nos Estados Unidos.
A verdade é que a filosofia portuguesa não tem nada a ver com isso e é desta perspectiva que podemos dizer que ela não existe, pois, graças a Deus, não há um sistema de filosofia portuguesa.

Agora vou dizer, só na aparência, o contrário do que disse: há filosofia portuguesa, é evidentíssimo que há, mas ela não pode ser pensada a partir dos moldes habituais. A nossa filosofia é aquela que, como diz quem chamou a atenção para ela
– Álvaro Ribeiro –, está escondida na nossa literatura, na nossa arte, na nossa arquitectura, na nossa paisagem, no nosso mar, na nossa sabedoria popular e até nos nossos filósofos. Poderia ter-lhe chamado pensamento português ou tradição portuguesa, mas com isso não teria concitado a atenção à volta do tema; teria sido uma intervenção mais ou menos inócua. Ao chamar-lhe filosofia portuguesa conseguiu irritar a academia e isso foi bom para que as águas se agitassem.

A filosofia portuguesa é uma floresta muito variada, todos os seus autores têm a lucidez de saber que não podem edificar um sistema. A filosofia portuguesa é a mesma dos nossos descobridores: partem nas caravelas do pensamento e vão vendo o que lhes aparece nessa aventura; estão em movimento e só desse modo vão descobrindo os brasis, as índias e parece que até as austrálias da alma; num momento aproximam-se daqui e noutro dali, mas sabem que não são nem daqui nem dali. Não é à toa que os portugueses saíram de Portugal assim que o conquistaram. O português é um viajante, um peregrino e, por isso, quando pensa o mundo, isto é, quando filosofa, é como se navegasse.

Assusta-me ver a filosofia portuguesa nas universidades. Tenho a esperança de que, apesar disso, nunca cheguem a inventar um sistema de filosofia portuguesa, porque enquanto não houver sistema haverá perguntas, quando houver sistema haverá respostas. Prefiro a beleza do perguntar à estultice do responder, quer dizer, do julgar que se sabe ao ponto de ter respostas; porque, como os nossos nobres navegadores, estamos a procurar e, assim que descobrimos o que procurávamos, logo partimos para outro lugar. É preferível a cegueira de achar que não existe filosofia portuguesa, ao acreditar que ela existe e querer enfiá-la num corpete, retirar-lhe aquilo que fundamentalmente a caracteriza: o amor da liberdade de pensar e até de se contradizer, se for caso disso.

sábado, 3 de novembro de 2007

Pensando à bolina (9)

A montanha inatingível

Pedro Sinde


Carlos Aurélio: Estrela, o manto do céu. Hesed
Caminhei por vales e montes, mas não cheguei à montanha. Não quiseste que subisse até ti, que olhasse o panorama distante, longe dos homens, que se avista do teu cimo. Não quero saber por que enviaste aquele dilúvio; agradeço-te até por não ter chegado. O que é chegar, afinal, senão a ilusão de julgar que se chegou?, a tristeza de se ter chegado?

O peregrino que chega à sua Jerusalém, chora quando chega, chora porque chega, chora porque quer já partir novamente, chora, enfim, porque no íntimo de si sabe que não chegou, sabe que nunca poderá chegar; e de estação em estação, de Jerusalém em Jerusalém, continuará a caminhar. Ele parece amar o destino para que se encaminha, mas não é assim, ama mais ainda o caminho, porque o destino é o mesmo para tantos outros, mas o caminho é só dele.

Tu, montanha alta, serás a minha Ítaca. Serás a mais alta das montanhas, a inatingível. Em cada lugar por onde passe, será sempre o teu cerro que procurarei. Pobres dos que crêem que, por terem subido, chegaram a ti. Não sabem que ninguém pode subir a montanha, que a montanha não se sobe; na ilusão da subida nem reparamos que é ela quem bondosamente desce até nós.

O homem, peregrino, caminhante, aspira a qualquer coisa que nunca chega a encontrar plenamente. O que procura não é deste mundo. Uma ânsia, a que em português se chama saudade, vibra como uma chama no mais íntimo da sua alma; é essa chama o seu guia.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Pretextos (5)

Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa (3)*

Pedro Martins

Rafael Monteiro foi, antes de mais, um historiador. Talvez por isso, a sua obra filosófica percorre sobretudo, e quase sempre, os caminhos da filosofia da história. O pensador procura encontrar um sentido que englobe o movimento dos homens e dos povos no tempo e no espaço. No fundo, a própria história é uma viagem, e, como tal, tem um ponto de partida e um ponto de chegada.

O ponto de partida dessa viagem parece ser a queda narrada na alegoria do Génesis, em consequência do pecado original. Rafael Monteiro considera que, nesse preciso momento, termina sobre a Terra a Idade do Ouro. O movimento que então se inicia implica um gradual afastamento do princípio; e deve, por isso, ser considerado numa perspectiva cíclica, que é revelada simbolicamente pela imagem do círculo.

Isto significa que Rafael Monteiro não acredita num desenvolvimento histórico linear e, consequentemente, recusa a ideia de um progresso continuado da Humanidade. Continuada, só a decadência, a degradação, a descida degrau a degrau, porque a queda ainda não terminou. Esta visão pessimista da história, que está bem patente na sua obra historiográfica, conjuga-se notavelmente com a ideia de V Império, a que Rafael dedicou, aliás, um artigo publicado na revista Tempo Presente.

Quem ainda se recordar daquilo que o Pedro Sinde disse há um ano nesta sala, no colóquio sobre Agostinho da Silva, saberá que, de acordo com a Tradição, à Idade do Ouro se sucedem a da Prata, a do Bronze e a do Ferro, e que a estas quatro idades correspondem os quatro impérios sonhados por Nabucodonosor. Há depois um quinto império, que é, no sonho do rei da Babilónia, a pedra que se desprende da montanha sem intervenção de mão humana, e que irá pôr termo à história, isto é, aos impérios anteriores.

O quinto império, instituído por intervenção divina, opera a redenção da Humanidade e corresponde ao ponto de chegada do movimento histórico. Por aqui se vê que a filosofia da história de Rafael Monteiro é um messianismo profético e providencialista. Rafael acredita que o erro e o mal hão-de ser eliminados pela intervenção divina. Mas, para que a graça plenamente se manifeste e o reino de Deus se cumpra enfim na república dos homens, é necessário que estes exercitem as três virtudes teologais: a Fé, a Esperança e a Caridade. A esta luz se compreende a Idade do Espírito Santo, sucedendo à Idade do Pai e à Idade do Filho, anunciando e preparando o V Império, a Parúsia ou a segunda vinda de Cristo. Rafael aborda este tema admiravelmente em O Culto do Espírito Santo, um dos dois artigos que publicou no jornal 57.

O seu pensamento volta a estar, assim, muito próximo das ideias de Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes. Mas parece ser sobretudo na obra de Álvaro Ribeiro (e, em especial, nas páginas de A Razão Animada) que Rafael colhe os ensinamentos mais importantes.

Nada disto põe em causa a originalidade da sua obra filosófica. Essa originalidade reside principalmente nos caminhos que por ele são trilhados, ou seja, nos argumentos inovadores com que sustenta teses já anteriormente enunciadas por outros. Valerá para o pensamento fecundo de Rafael a citação de Goethe que ele emprega no escrito notável sobre a procissão das Chagas: “Não se anda só para chegar, mas para viver o caminho”.
É, por exemplo, o que sucede no primeiro artigo publicado no jornal 57, em Setembro de 1958, e intitulado Relações esquecidas do mito português, em que, conjugando subtilmente a leitura do Dom Quixote de Cervantes com o nosso Amadis de Gaula, consegue demonstrar a singularidade do destino histórico de Portugal no contexto medieval europeu. A sua ideia parece ser esta: a Idade Média termina muito mais cedo em Portugal do que no resto do velho continente. Com a vitória em Aljubarrota, viramos as costas à Europa, com quem nos não identificamos, e iniciamos a aventura marítima.

Há aqui um aspecto curioso, e muito significativo, para o qual gostaria de chamar a vossa atenção. É que nesse mesmo mês (Setembro de 1958), mas num outro artigo, publicado no Diário de Notícias, Rafael, partindo, com argúcia, das conclusões do insuspeito Lúcio de Azevedo, refuta brilhantemente a ideia de que os Descobrimentos portugueses, que são uma etapa necessária, e já cumprida, do nosso destino messiânico, possam ser cabalmente explicados por motivos de ordem material, económica e comercial.

O facto de Rafael ter publicado, quase em simultâneo, dois escritos da maior originalidade e que tão bem se articulam entre si, é susceptível de nos revelar a vastidão e a profundidade do seu pensamento e leva-me a supor que, noutras circunstâncias, ele poderia ter sido um dos grandes filósofos portugueses do século XX. É, aliás, o que pressinto de cada vez que leio o que ele escreveu sobre os painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, onde a autenticidade das suas ideias se estende às conclusões que tem a feliz ousadia de nos apresentar. Mas, sobre isso, vai agora falar-nos o Luís Paixão.

Cotovia, 16 de Setembro de 2007
*
Comunicação apresentada ao colóquio Rafael Monteiro, Sesimbra e a Filosofia Portuguesa, realizado na Biblioteca Municpal de Sesimbra, em 22 de Setembro de 2007.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Pensando à bolina (8)

Amor fati

Pedro Sinde

"Amor fati" é uma expressão latina que exprime a ideia de que se deve amar o seu próprio destino. De vez em quando somos confrontados com acontecimentos inevitáveis, mesmo que nos pareçam pequenos. Perante o inevitável, o necessário, o destino, podemos resignar-nos ou, então, numa atitude de alma mais nobre, aceitá-lo como se tivesse sido uma escolha nossa.
Somos muito menos do que a imagem superficial ridícula que fazemos de nós, mas também somos muito mais, isto é, existe em nós uma sabedoria latente, profunda, pré-natal, que ultrapassa tudo quanto podemos sonhar. Infelizmente estamos separados de nós mesmos, vivemos à superfície de nós mesmos.

No mito de Er, Platão descreve que a alma, antes de nascer, escolhe o seu destino. Perante isto, sabendo isto, podemos, pois, aprender a descobrir porque é que escolhemos aquele acontecimento da nossa vida. Aprendendo a amar o nosso destino, aproximamo-nos daquela parte de nós que sabe, daquela parte da qual estamos separados. Em religião chama-se a essa parte de nós, o anjo; em filosofia aristotélica, a enteléquia ou o intelecto activo; ela é o céu do nosso pensamento, nós somos a sua terra, a terra onde se realiza a sua acção.
O português é, dos povos europeus, aquele que melhor conhece a noção de "fado", mas deleita-se excessivamente nele, sem procurar compreendê-lo, quando aquilo que importava era precisamente que sublimasse esse sentimento no cadinho da emoção.

Este é, talvez, um dos mais difíceis caminhos, é, também, um dos mais belos.
Se amarmos o que nos acontece de tal modo que saibamos que foi desejado por nós, iremos percebendo também a razão de ser do nosso destino, mesmo, sobretudo, no meio do sofrimento.
De todos os acontecimentos, o mais terrivelmente fatal é a morte, a dos nossos queridos e a nossa. Mesmo a morte, a nossa morte, há-de ter sido desejada.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Pretextos (4)

Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa (2)*

Pedro Martins
É sabido que Rafael Monteiro foi um destacado elemento da Mocidade Portuguesa local. Por isso, ao chegar à idade adulta, no início da década de 40, estava naturalmente identificado com o Estado Novo, que lhe propunha uma determinada ideia de Deus, da Pátria e da Família. Não deixará de colher dissabores junto de figuras mais ou menos importantes do regime, mas isso são contas de outro rosário.

Um dia, porém, passados os momentos dramáticos do ciclone de 15 de Fevereiro de 1941, e atenuados os seus efeitos devastadores, algo muda. É chegada a altura de lhe darmos a palavra: “Vindo da terra das bruxas (Arruda) um dia chegou o António Telmo; e entrou na roda, foi o «eixo» da roda. Com ele aprendemos a ler os “Lusíadas”, a conhecer Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, a amar Teixeira de Pascoaes”.

Com apenas 16 anos, mas agraciado já com a leitura de um livro que decidiu toda a sua vida espiritual – Literatura e Ocultismo, de Denis Saurat –, António Telmo veio rasgar horizontes e abrir panoramas a quem, até então, estivera, de alguma forma, encerrado na cova funda, confinado às ruas estreitas do velho burgo piscatório.

A descoberta de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, que António Telmo lhe proporcionou, terá deixado marcas profundas a Rafael Monteiro. Aqueles autores não recusam propriamente a fórmula Deus, Pátria e Família, proclamada por Salazar; mas estão nos antípodas do ditador, e dão, por isso, um sentido bem diferente às três ideias basilares, que tão próximas se encontram das três disciplinas filosóficas fundamentais.

Será difícil dizer até que ponto o veneno da tradição portuguesa, que em boa hora lhe foi inoculado pelo António Telmo, irá mudar a sua vida. Qualquer conjectura que eu arriscasse acabaria por ser ridícula, quando ainda há pessoas que, sobre isso, nos podem dar o seu testemunho fidedigno. Se a imagem me é permitida, limitar-me-ei a afirmar que a semente lançada à terra encontrou um terreno fértil.

Há depois um segundo marco.

Com 36 anos, exactamente no meio do caminho da sua vida, na idade em que Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro ou António Telmo conceberam ou publicaram livros inaugurais e decisivos, Rafael Monteiro escreveu um espantoso Depoimento – é esse o título que lhe dá –, que se manteve inédito até 2001, ano em que foi recolhido no volume Alguns Mareantes Desconhecidos de Sesimbra e outros textos. De alguma forma, tudo ali é questionado, interrogado, interpelado. A começar pela famigerada trilogia, que Salazar não quis discutir e que, com esse seu gesto de recusa, pode ter tornado irrecuperável.

Tenho para mim que este é o seu escrito mais importante. É também aquele que mais facilmente nos permite filiar Rafael na filosofia portuguesa. Pela sua leitura, podemos verificar até que ponto este homem religioso, que incessantemente procurava Deus, se distancia, logo na sua infância, da Igreja Católica, para depois a criticar em certos aspectos da doutrina, ou denunciar as contradições existentes entre essa doutrina e a prática quotidiana.

Assim, Rafael Monteiro confessa-nos que “na catequese, com um lapitos, riscava a palavra “Romana” na frase do catecismo: “Católica, Apostólica, Romana”, pois entendia, no seu “senso ingénuo que deveria lá estar “Portuguesa”, pois em Portugal” “nascera e não em Roma”. Neste ponto, Rafael não poderia estar mais próximo de Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes, defensores da criação de uma Igreja nacional, portuguesa, lusitana.

Também a confissão e o celibato dos sacerdotes lhe causavam perplexidade ou confusão. Na sua óptica, a confissão, levando o sacerdote a absolver o fiel dos pecados cometidos, torna-o “um ente maior e melhor do que Deus”, e conduz necessariamente à sua deificação. O celibato dos sacerdotes percebe-se mal, torna-se mesmo incompreensível, quando a Igreja diz defender a Família e a tradição nos ensina que a Maternidade é superior à Virgindade, pois Nossa Senhora foi Esposa e Mãe.

É curioso observar que, de um certo ponto de vista, Rafael volta a estar muito próximo de Sampaio Bruno. Para este filósofo, a confissão auricular era o veículo de uma escravatura moral, que vinculava a mulher ao sacerdote; e só a eliminação do celibato imposto aos clérigos faria com que a mulher abandonasse espontaneamente o confessionário, pois esta, por uma questão de pudor e de orgulho, deixaria de confiar ao padre assuntos que ele, presumivelmente, iria comunicar à sua própria esposa.

De outro ponto de vista, a valorização que Rafael Monteiro faz do sacramento do Matrimónio, em detrimento do da Ordenação, identifica-o com Álvaro Ribeiro. É, aliás, nesta linha de pensamento que se insere outra crítica sua apontada à Igreja, motivada pela estranheza que lhe causa o facto de só serem “brancos os caixões das crianças e das pessoas solteiras, e negros os outros, como se o casamento, que a Igreja consagra, fosse pecado, acto impuro – contrário de bondade e de amor”.

Aliás, Rafael Monteiro diz não se entristecer perante a morte, pois, como cristão, vê nela uma forma de redenção. Neste aspecto, Rafael volta a seguir de muito perto a doutrina de Álvaro Ribeiro, e só não compreende que a Igreja “revista todos os actos fúnebres de panejamentos negros e chore o finado”. No seu entendimento infantil, “a Igreja deveria alegrar-se com a morte, se realmente crê, como propaga, ser a morte redenção”.

Perante tudo isto, bem se entende que Rafael Monteiro nos afirme não haver encontrado resposta para as suas interrogações no templo e nos sacerdotes, ao sentir vedado, ou interrompido, o caminho que, na sua infância, o unia a Deus.

Rafael vai, então, procurar essa resposta na filosofia, e de Platão e Aristóteles a Dante e a Hegel, lê quase tudo quanto de verdadeiramente importante há para ler. Agora, busca Deus livremente, e admite mesmo chegar a entrevê-lo aqui e ali, mas sentindo-o sempre longe, inacessível e estranho ao seu sentir de português.

Só a filosofia portuguesa lhe dará a resposta que procurava, só ela lhe mostrará o caminho de regresso a Deus. A leitura contínua e meditada da obra de Álvaro Ribeiro vem a revelar-se fundamental. E Rafael confessa, por fim, ter chorado ao ler o prefácio de A Razão Animada, livro a que simplesmente chama o Evangelho, a Boa-Nova da Pátria.

A leitura da obra-prima de Álvaro parece ter tido o fulgor das revelações. Foi decisiva e definitiva. À parte os escritos sobre os painéis ditos de Nuno Gonçalves, que são mais tardios, a sua obra filosófica virá a lume quase imediatamente, nos três anos seguintes, entre 1958 e 1960, em boa parte nas páginas do jornal 57. Vamos agora falar um pouco sobre ela.

(continua)
* Comunicação apresentada ao colóquio Rafael Monteiro, Sesimbra e a Filosofia Portuguesa, realizado na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 22 de Setembro de 2007.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Pensando à bolina (7)

Os esotéricos

Pedro Sinde

Chama-se mentira ao acto de falar sobre aquilo que não sabemos. Visto desta perspectiva, o homem é naturalmente mentiroso e pouco mais é do que isso, porque, no fundo, nada sabe do mundo em que vive e passa todo o tempo numa tagarelice fantasista .
A mentira atinge a sua mais irónica perversão entre as pessoas ditas "espirituais", que gostam de "esoterismo". Falam de "corpos astrais", de "mundos paralelos", "reencarnação", "chakras" e organizam a sua vida em torno disso. Não deram ainda o primeiro passo na nobre doutrina da autognose e falam como se soubessem tudo, tudo explicando por um ou dois termos da moda: energia e vibração. Um e outro são utilizados num leque de acepções tão vasto que neles cabe qualquer coisa; e como neles cabe qualquer coisa, servem para explicar tudo.
Passam horas a meditar; mas que coisa é meditar? São incapazes do mínimo gesto de bondade, de olhar atentamente o outro e ver o que ele necessita; vivem fechados no seu umbigo, a que chamam, deleitados, o chakra do plexo solar, se não lhe derem um outro qualquer nome hindú ou chinês difícil de pronunciar.

Agora mesmo o sol, pondo-se, chegou ao horizonte depois de ter estado escondido por uma longa faixa de nuvens. A luz laranja cantou subitamente o seu hino fulgurante, ígneo; quase é possível ouvi-la. Magnífico!
Deixemos, pois, esses astrais, quando temos aqui mesmo o astro. Deixemos as literatices e olhemos para o mundo magnífico em que estamos. Em vez de uma meditação, façamos uma oração e que ela não seja um pedido, mas apenas um agradecimento. Já temos tudo connosco, não precisamos de mais; pelo contrário, precisamos é de menos, porque o que temos a mais não nos deixa ver.

domingo, 30 de setembro de 2007

Pensando à bolina (6)

Brevíssimo diálogo desconcertante

Pedro Sinde

Encontro um amigo na rua e saúdo-o naquele estado habitual em que se saúdam as pessoas umas às outras, quer dizer, em que é o hábito social a falar por nós, em que perguntamos sem que esperemos uma resposta verdadeira.

- Como estás? Correu-te bem o dia?

Olhou-me com ar pensativo. Estranhei a demora na resposta; não é normal, perante uma banal pergunta de cortesia, o nosso interlocutor ficar mesmo a pensar nela. Ele levou a sério a pergunta. Ao fim de algum tempo, que mais parecia não ter fim, respondeu, fitando-me profundamente:

- Sinde, meu caro, passou mais um dia, foi milagre atrás de milagre e, no entanto, eu vivi-o como se fosse natural estar vivo...

- Como assim? - perguntei, ainda absorto no meio da estupefacção.

- Repara, o sol ergueu-se no céu e veio iluminar a terra; eu despertei como que da morte, pois deitei-me de noite e só me levantei com o sol a erguer-se e não me lembro de nada entre o deitar e o levantar; andei, senti, pensei, pude olhar o mundo e tudo isto sem sentir que estou vivo. Não é espantosa a estupidez a que se pode chegar?

- Pois - balbuciei, turbado e desconcertado. - Até amanhã, Dinis! - preferi despedir-me, antes que eu mesmo começasse a sentir que estou vivo.

domingo, 23 de setembro de 2007

Pretextos (3)

Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa*

Pedro Martins

De todos os oradores deste colóquio, só eu não cheguei a conviver com Rafael Monteiro. No entanto, não deixei de o conhecer pessoalmente, numa das poucas vezes em que o encontrei na redacção do jornal local em que ele colaborou nos últimos anos da sua vida.

Curiosamente, e tanto quanto julgo saber, serei também o único dos seis oradores desta tarde que travou uma polémica com Rafael na imprensa regional, precisamente nas páginas do tal jornal, um mensário em cujas instalações exíguas nos viríamos depois a cruzar de modo episódico.

Naquela altura, eu tinha apenas dezassete anos. Tinha também algumas ideias feitas. Porventura, demasiadas. Um dia, ao ler o tal jornal, não gostei que R. M. – era assim que ele assinava – elogiasse a RTP por esta haver suspendido um programa da autoria de Herman José, chamado Humor de Perdição, em que o humorista maltratava as principais figuras da História de Portugal. Escrevi então uma carta indignada ao director do mensário, que a publicou. Rafael respondeu-me ferozmente e eu repliquei-lhe com contundência. A coisa ficou por ali; e os ânimos ficaram exaltados.

Quando, mais tarde, travámos conhecimento pessoal, na redacção do dito jornal, não lhe notei qualquer animosidade. Verifiquei, então, com certo regozijo, que não me guardara rancor, o que, aliás, era recíproco. Creio que o armistício ficou selado tacitamente quando ele me cravou um ou dois cigarros.

Relembro, aqui e agora, o que então sucedeu, com o exclusivo propósito de demonstrar que este homem, que era um lutador e um combatente, tinha a nobreza dos melhores guerreiros.

Alguns dos seus combates eram verdadeiros conflitos íntimos. A este propósito, será oportuno contar um outro episódio passado com Rafael. Dois ou três anos depois daquela polémica, eu editava, com dois amigos (o António Ladeira e o Nuno Sanchez Lacasta), a página cultural daquele jornal. Essa rubrica, graças a uma ideia brilhante do Ladeira, tinha um título excêntrico, contrastante e pleno de subentendidos: chamava-se “Incêndio na Fábrica de Extintores”. Ao cabo do segundo aniversário da página, resolvemos comemorar a sua criação, e decidimos entrevistar Rafael, mas ele declinou o convite. Mudámos a agulha e o António Ladeira foi a Almada entrevistar o escritor Romeu Correia, que era casado com uma sesimbrense, Almerinda Correia, e havia escrito maravilhosamente sobre Sesimbra, num romance intitulado Trapo Azul. Quando o Rafael viu a entrevista publicada no jornal, terá exclamado qualquer coisa como isto: “Pois! Não me entrevistaram a mim, para irem entrevistar este comunista!”.

Já algumas pessoas me disseram que esta atitude inconstante e, por isso mesmo, desconcertante era própria de Rafael. Ao que julgo saber, ele até admirava o escritor almadense, com quem partilhou certos pontos de vista na defesa dos pescadores contra os malefícios do arrasto, mas o anticomunismo persistente que o caracterizava, aliado a uma pontinha de ciúme, desembocou nesta confissão de desalento e desconsolo. Eu julgo que Rafael queria e não queria ser entrevistado; e que, por isso, terá travado, no seu íntimo, uma batalha tremenda consigo mesmo.

Fora isto, o seu anticomunismo, público e notório, aliado a uma admiração incondicional, que sempre manteve, pela figura de Salazar, valeu-lhe o rótulo apressado e injusto de fascista. Ora, eu estou em crer que este é um bom ponto de partida para se avaliar em que medida Rafael Monteiro foi um homem da filosofia portuguesa.

(continua)

* Comunicação apresentada ao colóquio Rafael Monteiro, Sesimbra e a Filosofia Portuguesa, realizado na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 22 de Setembro de 2007.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Pensando à bolina (5)

Experiências com animais

Pedro Sinde

Imaginemos os dois, o leitor e eu, que em vez de serem os homens a fazer experiências com animais, eram os animais a fazer experiências com os homens. Imaginemos que uma espécie de animais resolvera caçar homens, reproduzi-los (reproduzir-nos!) para realizar experiências "científicas". Tudo isto, é claro, porque a sua espécie estava ameaçada por uma estranha doença e necessitavam de encontrar a cura. Não podemos dizer que seria por razões humanitárias, mas por razões animalitárias.
O que faria o homem quando reparasse que os seus estavam a desaparecer enigmaticamente e descobrisse que os animais os tinham enjaulado, que lhes davam injecções com líquidos que lhes causavam uma dor atroz, que lhes implantavam orelhas nas costas e braços na cabeça?

O animal é visto como uma "coisa" ao serviço do homem. E o que é curioso é que aqueles que fazem estas experiências atrozes com os animais são exactamente os mesmos que defendem que os homens são apenas animais entre animais, par inter pares. Se o homem é apenas um igual entre iguais com o animal, então que direito o assiste nesse infligir de sofrimento inimaginável, invisível, mas bem existente? Os horrores de um laboratório científico... uma câmara de tortura!

Não há dúvida de que falta à nossa ciência uma orientação metafísica. Acalento a esperança secreta de que, no fundo, no fundo, eles não sabem o que fazem; possa assim alguém perdoar-lhes.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Pensando à bolina (4)

O Deus da nossa infância

Pedro Sinde

A ideia infantil que formámos de Deus é, simultaneamente, um obstáculo e uma ajuda. É uma ajuda porque o pensamos como a fonte da bondade, da beleza e da verdade; e isto é causa de esperança. Acalenta-nos a ideia de que, havendo injustiça no mundo, há, no entanto, uma justiça transcendente, uma justiça que transferimos para o outro mundo. Tudo isto é bom, descansa-nos.
Porém, o pensador, o filósofo, deve olhar para a ideia de Deus com coragem, deve superar a imagem infantil que se entranhou na sua alma em criança. Para o filósofo, essa ideia é um obstáculo que não o deixa pensar livremente, que não o deixa pensar seriamente.
A parábola do filho pródigo mostra-nos nitidamente estas duas possibilidades: o filho que fica em casa é aquele que conserva a ideia infantil de Deus; o filho que sai de casa, percorre o mundo e é recebido, para escândalo do outro irmão, com uma festa, assim que retorna a casa, é aquele que não se contentou com a imagem recebida em criança. Estes são o caminho da religião e o caminho da filosofia.
O filósofo andará sozinho, será rejeitado, caluniado, será visto como um louco, mas será livre e procurará verdadeiramente. Errará, certamente, várias vezes, mas o ímpeto da demanda é mais forte do que ele; quem sabe se não é o próprio Deus a procurar-se a si mesmo no filósofo?

A maravilha do mundo, tal como nos aparece vertida na natureza, é certamente um pensamento divino - de que estranho acaso poderia ter saído tanta magnificência? -, mas nessa maravilha esconde-se o horror da morte e do sofrimento dos inocentes: é o veado perseguido pelo leão ou a criança que sofre horrores que nós nem imaginamos.
Ao filósofo cabe o duro papel de pensar o mundo como um todo, sem corpetes, sem palas, num esforço heróico e tremendo. Quem alguma vez passou pela experiência de pensar verdadeiramente o mal não poderá mais fingir que o mundo é apenas fruto da harmonia. Vemos nele essa harmonia, manifestada de um modo insuperável na natureza, mas um vento gelado, caótico, tende a infiltrar-se nela a todo o tempo.
É fácil ver a causa do bem em Deus, difícil é pensar a causa do mal.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Escaparate (2)


Barros Basto - A Miragem Marrana,
de Alexandre Teixeira Mendes

Pedro Sinde

Este livro revela-nos Barros Basto e a questão marrana. Escrito num estilo que mostra e esconde, parece jogar com o leitor, levando-o gradualmente a procurar perceber por si próprio o pensamento do autor. Não é um livro objectivo, na medida em que é um livro com alma, um livro apaixonado e apaixonante. Só os sem alma, podem transformar o sujeito do seu estudo em objecto. Alexandre Teixeira Mendes, pelo contrário, transforma o objecto do seu estudo em sujeito; é assim que Barros Basto, o apóstolo dos marranos, nos aparece vivo, contraditório, verdadeiro, o herói que lutou pelo resgate dos marranos, isto é, dos judeus que durante quatro séculos se esconderam, passando e recriando, de geração para geração, uma tradição que não podiam exprimir à luz do dia; a noite era o seu dia!

Vemos Barros Basto, no horizonte, de pé e em luta contra dois gigantes – a igreja católica e a "igreja" judaica –, um David e dois Golias; vemo-lo a dar o toque para reunir os que se encontravam dispersos. Alexandre Teixeira Mendes não está fora a olhar Barros Basto; acompanha-o na juventude, na conversão, na guerra, na organização do misterioso Instituto Oryamita, na Obra de Resgate. E nós, seus leitores, acompanhamo-lo por uma viagem inesquecível a um dos pontos mais importantes da alma do ser português e que só Sampaio Bruno e António Telmo estudaram, com a mesma audácia e liberdade que agora encontramos no autor deste livro.

Lançamento

Barros Basto A Miragem Marrana,

de Alexandre Teixeira Mendes


No âmbito das comemorações da Jornada Europeia da Cultura Judaica, que, entre nós, se realizam este ano no Porto, em 2 de Setembro, é lançado o livro Barros Basto – A Miragem Marrana, da autoria de Alexandre Teixeira Mendes. O lançamento desta obra, prefaciada por António Telmo, terá lugar será na Sinagoga Mekor Haim, na Rua Guerra Junqueiro, 304, e a sua apresentação será feita por Pedro Sinde.

Ao longo do dia, estão previstas diversas actividades, das quais se destacam uma visita guiada ao Porto Judaico, de manhã, seguida de almoço histórico em Miragaia. À tarde, a partir das 17 horas, já na Sinagoga do Porto, e precedendo o lançamento, estará patente uma exposição sobre a vida e a obra do Capitão Arthur Barros Basto e será exibido um filme sobre as actividades judaicas no Norte de Portugal.

O programa da Jornada Europeia pode ser consultado no blogue da Ladina.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Pensando à bolina (3)

Sinais da natureza: o trevo e a estrela
Pedro Sinde

O trevo é uma expressão natural do número três. Como as suas três folhas estão unidas no centro, ele manifesta a unidade na trindade. É curioso, no entanto, que o povo entenda que o trevo se realiza plenamente apenas no número quatro. Um trevo de quatro folhas é uma anomalia, é uma excepção; mas é nessa excepção que o povo cristaliza a ideia de boa sorte.
Esconde-se aqui a ideia de que fora da norma, do normal, é que há-de estar o excepcional; aí é que o sobrenatural se revela plenamente.
O trevo, de algum modo, realiza-se no número quatro, mas isto não significa que todos os trevos deviam ter quatro folhas, pois isso faria deles outra coisa que não um trevo. O que me parece que está aqui significado é que um trevo de quatro folhas é, para o mundo dos trevos, o que um santo é para o mundo dos homens. Nem todos os homens se tornam santos, mas todos têm o sinal da santidade para que tendem.
A ideia de que dá boa sorte encontrar casualmente um trevo de quatro folhas revela a crença de que esse trevo é dotado de um poder especial, poder esse que, ao aparecer a uma determinada pessoa, assinala ou revela esse mesmo poder nela.
É curioso o simbolismo da estrela cadente, pois uma estrela que cai pareceria poder exprimir um sinal nefasto. O povo, porém, atribui a essa queda a ideia de descida; uma estrela cadente é, pois, uma luz celeste que desce à terra. Quem a vê deve formular um desejo; essa descida é um sinal de que a pessoa que a viu participa da luz que desceu.
Num e noutro caso trata-se sempre de, sem procurar, encontrar. Todavia, não procurar não é sinónimo de estar desatento. Uma pessoa desatenta passaria pelo trevo sem o ver, ainda que ele estivesse,
isolado, à frente dos seus olhos. Trata-se de uma atenção livre, disponível para o mundo, mas sem avidez. Quem tem o hábito de circular por livrarias ou bibliotecas sabe que é com essa disposição da alma que se encontra, inesperadamente, o livro que se procurava, sem saber que se procurava. É, em suma, a mesma atitude que devemos ter a cada dia: estar livremente atentos, para ver o que vem; no horizonte de cada dia qualquer coisa pode acontecer: a morte, a iluminação ou até ambas.
Para encontrarmos o trevo de quatro folhas é preciso olhar a terra; para ver a estrela cadente é preciso contemplar o céu. O homem da cidade só vê, quando repara neles, o betão no chão e as luzes das ruas a encobrir o céu. Não deve ser por acaso que no Corão se diz que, no fim dos tempos, nem uma cidade ficará de pé.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Um novo blogue

António Quadros
É o nome de um blogue sobre o pensador de Portugal, Razão e Mistério, consagrado à evocação da sua vida e à divulgação e ao estudo da sua obra. António M. Ferro é o autor. Pode ser lido aqui.

(fotografia: www.antonioquadros.blogspot.com)

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Bellum sine bello

Carta a Pedro Sinde

António Cândido Franco

Pedro Sinde, querido Amigo:

Estou a ler a tua carta com o cuidado que a tua pessoa me merece. A resposta virá mais tarde, em Setembro, quando regressar de férias.
Assim como assim, quero desde já agradecer-te a disponibilidade que puseste em me escrever. É um gosto e uma atenção que espero estimar e merecer.
Será que leste a pequena homenagem a Mário Cesariny que publiquei na revista A Ideia (nº 63), a propósito do seu falecimento? É um testemunho pessoal, nada mais, mas onde se fala de Pascoaes. Serve, para já, de entrada às palavras da minha resposta futura.
Isto se o Pedro Martins tiver a paciência e a generosidade de me reproduzir e aturar o texto no blog.
Abraço muito amigo do teu

António Cândido
Évora, 24 de Julho de 2007
_______

Homenagem a Mário Cesariny
António Cândido Franco

A primeira vez que falei com Mário Cesariny foi na Mãe-de-Água, às Amoreiras, em Lisboa, no ano de 1990, quando a Assírio & Alvim lançou A Phala especial, dedicada aos cem anos da poesia portuguesa (1888-1988). Recordo um dia de chuva, enevoado e ventoso; quando cheguei, o espaço estava repleto de uma pequena e ruidosa multidão. O Hermínio deu-me um exemplar do volume, onde eu participava com um texto sobre Teixeira de Pascoaes. Folheei-o e daí a nada, à minha frente, falando com um desconhecido, estava o Mário Cesariny, magro e seco.
Avistara-o uma única vez, uns anos antes, em 1984 ou em 1985, em Entre-Campos, de cachecol e boné enfiado na cabeça, na festa dos dez anos da revista A Ideia. Eu estava com o Ruy Cinatti e os dois reconheceram-se quando se cruzaram à saída, tirando os bonés e fazendo um ao outro um sorriso infantil. Foi momento comovente que não mais esquecerei. Eu acompanhara o Ruy e o Mário fora decerto o Miguel Serras Pereira que o levara ou que lhe dera a notícia da reunião pois recordo que recitou no espectáculo dois ou três dos seus poemas.
Agora, anos depois, surgia ali, mesmo ao meu lado, em cabelo branco, com os traços rijos de um plebeu aristocrata. Havia um cheiro intenso a ceruma verde e como ele estivesse a fumar pensei que era ele que estava de charro na mão.
– Ora o Cesariny não faz por menos a festa – entretive comigo. – Vir para o meio do maralhal fumar erva mal seca. Só ele. É um pivete que chega ao Jardim da Estrela.
Anos mais tarde, confessou-me que nunca tocara num cigarro de liamba ou em qualquer outra droga e que durante a sua longa vida não bebera mais do que três ou quatro cervejas. O único excesso fora uma aspirina com uma cerveja, nos tempos do Gelo, nos anos cinquenta, e que quase rebentara com ele.
– Agora imagine o que teria sido a minha vida, com a paixão que me caracteriza, se eu tivesse experimentado qualquer droga. Nunca mais a largava. Era o inferno – rematou.
No fim do lançamento, quando a multidão começava a escoar, reparei que ele se deixara ficar para trás, folheando um livro que lhe haviam dado. Atrevi-me a abordá-lo. Apresentei-me a medo. Ele foi de uma gentileza inexcedível, mostrando-se atencioso e muito atento às minhas palavras. Falámos sobre Teixeira de Pascoaes. Eu conhecia a antologia que ele fizera em 1972 da obra do poeta do Marão, as palavras firmes do seu prefácio, considerando Pascoaes superior a Pessoa. Reafirmou-me os juízos, apimentando-os com saborosas apreciações. Acabara de publicar o Virgem Negra. Estava cáustico.
– O Fernandinho foi um talento literário de primeira grandeza. Tinha talento para dar e vender, mas ficou limitado pela tralha do tempo – disse-me ele. – Pascoaes, pelo contrário, não tem tempo; a Lua dele já lá estava na primeira alvorada do mundo e lá há-de ficar no momento em que tudo acabar. É maravilhoso.
Pouco tempo depois, voltei a encontrá-lo na cave da Assírio & Alvim, onde ele ensaiava ao piano poesias suas. Recebeu-me com a mesma amabilidade e graça. Aí falámos de António Maria Lisboa e Leonardo Coimbra, via Sarmento Beires. Contestou a possibilidade do pensamento libertário de António Maria Lisboa poder ser aproximado do criacionismo vitalista de Leonardo. Era hipótese que eu levantara num livreco publicado uns meses antes, em 1989, O Mar e o Marão, que lhe fiquei de enviar para casa.
Enviei-lhe o livro e recebi telefonema dele agradecendo. Calava os desacordos em nome da liberdade e do coração, disse-me ele. Mais tarde, em 1995, publiquei em edição privada de cem exemplares a Carta a um Amigo sobre Teixeira de Pascoaes e o Cristo de Travassos, dedicada ao Luís Amaro, de que lhe enviei um exemplar e que mereceu desta vez carta e novo telefonema dele. Estava entusiasmado e queria falar comigo cara a cara. O ateísmo contraditório de Pascoaes, que eu explorava nesse texto, interessava-lhe muito; tinha segredos para me revelar. Combinámos um encontro na casa dele para tirarmos tudo a limpo.
Pus então pela primeira vez o pé na Rua Basílio Teles, ao pé do Instituto Português de Oncologia. Descobri o prédio dele, baixo e familiar, numa esquina. Tudo aquilo me pareceu conhecido e universal. Subi. O Mário morava no último andar, ao pé da clarabóia de vidro. Era o fim do dia e uma claridade luminosa, que parecia vir do nascer do mundo, caía do alto sobre a escada. Bati. O Mário demorou a abrir. Ajoelhou-se depois, quando me viu. Eu ajoelhei-me também, encantado com aquele homem de cabelo branco que se comportava como uma criança. Pediu-me para lhe pôr a mão na cabeça. E foi assim, desta forma quase sagrada, que eu entrei em sua casa.
O seu quarto estava mesmo ao pé da porta da entrada. As paredes estavam por pintar, escuras da humidade e da nicotina. Em frente da porta, encostada à parede, estava a cama de corpo único, que ele me apontou.
– Eis o túmulo – disse.
Falámos durante duas ou três horas, sentados na pedra daquela tumba. Fomos interrompidos apenas uma vez, por uma senhora pequenina, de olhos verdes, voz rouca de fumadora, que o veio chamar para tomar os remédios. Era a Henriete, a irmã com quem vivia. Retomámos logo de seguida com o mesmo entusiasmo. Cesariny falou-me como encontrou em 1950 em Amarante Pascoaes, como o começou a ler, como frequentou a sua casa, já no tempo do sobrinho João e da Maria Amélia, como o deu a conhecer a António Maria Lisboa, a Ernesto Sampaio, a Cruzeiro Seixas. Ligava Pascoaes ao surrealismo vivo e eterno, sem escola nem arte, ao mais espontâneo e vivo da imaginação humana.
No fim, fez questão de me mostrar no corredor a estante onde tinha os livros de Pascoaes, emprestando-me ao mesmo tempo um livro de Breton que lhe agradava especialmente, Entretiens (1952) e onde segundo ele o surrealismo e o pensamento libertário se davam as mãos com rara felicidade. No meio, por acaso, soltou-se da prateleira um livro de René Guénon, que tinha uma dedicatória do António Barahona.
– O António quer ‘ultrapassar’ o Breton, mas o Breton não se pode ultrapassar, porque também não pertence ao Tempo ­– exclamou ele.
Depois disso encontrámo-nos diversas vezes, uma delas, em Dezembro de 2002, na casa de Pascoaes, em Amarante. Tomámos o pequeno-almoço juntos na casa do poeta, servido pela sobrinha Maria Amélia, e depois descemos ao pequeno cemitério de Gatão, onde Pascoaes repousa numa campa rasa, com uma simples lousa, onde se inscrevem dois versos que ele propositadamente escreveu para ali figurarem (cito de memória): de tanta luz apagado/ de tanta palavra mudo.
Em todos esses encontros tive sempre da sua parte as mesmas manifestações de amabilidade e graça. Gostava de se expor, de mostrar tudo preto no branco, sem censuras, aberto e directo, mas era de uma correcção quase inexcedível. Recorria menos à palavra grossa e provocadora que ao sonho da catarse purificadora, raramente deslizando para o insulto ou para o desabafo crítico. Tudo nele era inocente e infantil.
A última vez que o vi foi a 3 de Maio de 2004 na Cinemateca, na apresentação do filme de Miguel Gonçalves Mendes. Do filme, recordo a cabeça do Mário acompanhada por um rugido de leão; do Mário, lembro a simplicidade atrabiliária com que se voltou para a sala, olhos fechados, quando as luzes se acenderam, dizendo com um encolher de ombros para um público de jovens e piercings:
– O poema que se ouve não é mau.
Riram os jovens. Pediram-lhe mais palavras e ele exclamou melancólico, entre Bénard da Costa e Miguel Gonçalves:
– Tudo isto é lindo, com todos a baterem palmas, a quererem que eu fale, mas o problema é que quando isto acabar vou ter de regressar sozinho a casa. E vocês nem sabem como aquilo para a Palhavã é frio e feio.
Era assim o Mário, mais nobre que feroz, mais simples que maldoso, mais santo que sibarita.
Partiu agora, de vez, e sem companhia, a 26 de Novembro de 2006. Tinha oitenta e três anos e deixa atrás de si um vazio imenso, porque foi dos últimos a escrever e a pintar com a autenticidade do espírito. Do seu tempo e da sua têmpera restam Cruzeiro Seixas e com certeza Luiz Pacheco, o terrível; depois não se percebe muito bem o que fica nem o que interessa.
Tudo o que me resta é abrir o Livro dos Mortos Tibetanos no capítulo décimo segundo, onde estão as palavras por aqueles que partiram. Leio-as e paro no momento em que se pede protecção para aquele que morreu. E faço também um desejo: que o terror da morte, a que o Mário era tão sensível, se possa transformar na clarividência sublime da vida, essa que ele sempre procurou através das palavras, das cores e dos gestos maravilhosos. Com eles esconjurou a miséria mesquinha deste tempo de plástico, dando-nos uma lição sincera de poesia e liberdade.