Carta a Pedro Sinde
António Cândido Franco
Pedro Sinde, querido Amigo:
Estou a ler a tua carta com o cuidado que a tua pessoa me merece. A resposta virá mais tarde, em Setembro, quando regressar de férias. Assim como assim, quero desde já agradecer-te a disponibilidade que puseste em me escrever. É um gosto e uma atenção que espero estimar e merecer. Será que leste a pequena homenagem a Mário Cesariny que publiquei na revista A Ideia (nº 63), a propósito do seu falecimento? É um testemunho pessoal, nada mais, mas onde se fala de Pascoaes. Serve, para já, de entrada às palavras da minha resposta futura. Isto se o Pedro Martins tiver a paciência e a generosidade de me reproduzir e aturar o texto no blog. Abraço muito amigo do teu
António Cândido
Évora, 24 de Julho de 2007
António Cândido Franco
Pedro Sinde, querido Amigo:
Estou a ler a tua carta com o cuidado que a tua pessoa me merece. A resposta virá mais tarde, em Setembro, quando regressar de férias. Assim como assim, quero desde já agradecer-te a disponibilidade que puseste em me escrever. É um gosto e uma atenção que espero estimar e merecer. Será que leste a pequena homenagem a Mário Cesariny que publiquei na revista A Ideia (nº 63), a propósito do seu falecimento? É um testemunho pessoal, nada mais, mas onde se fala de Pascoaes. Serve, para já, de entrada às palavras da minha resposta futura. Isto se o Pedro Martins tiver a paciência e a generosidade de me reproduzir e aturar o texto no blog. Abraço muito amigo do teu
António Cândido
Évora, 24 de Julho de 2007
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Homenagem a Mário Cesariny
António Cândido Franco
A primeira vez que falei com Mário Cesariny foi na Mãe-de-Água, às Amoreiras, em Lisboa, no ano de 1990, quando a Assírio & Alvim lançou A Phala especial, dedicada aos cem anos da poesia portuguesa (1888-1988). Recordo um dia de chuva, enevoado e ventoso; quando cheguei, o espaço estava repleto de uma pequena e ruidosa multidão. O Hermínio deu-me um exemplar do volume, onde eu participava com um texto sobre Teixeira de Pascoaes. Folheei-o e daí a nada, à minha frente, falando com um desconhecido, estava o Mário Cesariny, magro e seco. Avistara-o uma única vez, uns anos antes, em 1984 ou em 1985, em Entre-Campos, de cachecol e boné enfiado na cabeça, na festa dos dez anos da revista A Ideia. Eu estava com o Ruy Cinatti e os dois reconheceram-se quando se cruzaram à saída, tirando os bonés e fazendo um ao outro um sorriso infantil. Foi momento comovente que não mais esquecerei. Eu acompanhara o Ruy e o Mário fora decerto o Miguel Serras Pereira que o levara ou que lhe dera a notícia da reunião pois recordo que recitou no espectáculo dois ou três dos seus poemas. Agora, anos depois, surgia ali, mesmo ao meu lado, em cabelo branco, com os traços rijos de um plebeu aristocrata. Havia um cheiro intenso a ceruma verde e como ele estivesse a fumar pensei que era ele que estava de charro na mão. – Ora o Cesariny não faz por menos a festa – entretive comigo. – Vir para o meio do maralhal fumar erva mal seca. Só ele. É um pivete que chega ao Jardim da Estrela. Anos mais tarde, confessou-me que nunca tocara num cigarro de liamba ou em qualquer outra droga e que durante a sua longa vida não bebera mais do que três ou quatro cervejas. O único excesso fora uma aspirina com uma cerveja, nos tempos do Gelo, nos anos cinquenta, e que quase rebentara com ele. – Agora imagine o que teria sido a minha vida, com a paixão que me caracteriza, se eu tivesse experimentado qualquer droga. Nunca mais a largava. Era o inferno – rematou. No fim do lançamento, quando a multidão começava a escoar, reparei que ele se deixara ficar para trás, folheando um livro que lhe haviam dado. Atrevi-me a abordá-lo. Apresentei-me a medo. Ele foi de uma gentileza inexcedível, mostrando-se atencioso e muito atento às minhas palavras. Falámos sobre Teixeira de Pascoaes. Eu conhecia a antologia que ele fizera em 1972 da obra do poeta do Marão, as palavras firmes do seu prefácio, considerando Pascoaes superior a Pessoa. Reafirmou-me os juízos, apimentando-os com saborosas apreciações. Acabara de publicar o Virgem Negra. Estava cáustico. – O Fernandinho foi um talento literário de primeira grandeza. Tinha talento para dar e vender, mas ficou limitado pela tralha do tempo – disse-me ele. – Pascoaes, pelo contrário, não tem tempo; a Lua dele já lá estava na primeira alvorada do mundo e lá há-de ficar no momento em que tudo acabar. É maravilhoso. Pouco tempo depois, voltei a encontrá-lo na cave da Assírio & Alvim, onde ele ensaiava ao piano poesias suas. Recebeu-me com a mesma amabilidade e graça. Aí falámos de António Maria Lisboa e Leonardo Coimbra, via Sarmento Beires. Contestou a possibilidade do pensamento libertário de António Maria Lisboa poder ser aproximado do criacionismo vitalista de Leonardo. Era hipótese que eu levantara num livreco publicado uns meses antes, em 1989, O Mar e o Marão, que lhe fiquei de enviar para casa. Enviei-lhe o livro e recebi telefonema dele agradecendo. Calava os desacordos em nome da liberdade e do coração, disse-me ele. Mais tarde, em 1995, publiquei em edição privada de cem exemplares a Carta a um Amigo sobre Teixeira de Pascoaes e o Cristo de Travassos, dedicada ao Luís Amaro, de que lhe enviei um exemplar e que mereceu desta vez carta e novo telefonema dele. Estava entusiasmado e queria falar comigo cara a cara. O ateísmo contraditório de Pascoaes, que eu explorava nesse texto, interessava-lhe muito; tinha segredos para me revelar. Combinámos um encontro na casa dele para tirarmos tudo a limpo. Pus então pela primeira vez o pé na Rua Basílio Teles, ao pé do Instituto Português de Oncologia. Descobri o prédio dele, baixo e familiar, numa esquina. Tudo aquilo me pareceu conhecido e universal. Subi. O Mário morava no último andar, ao pé da clarabóia de vidro. Era o fim do dia e uma claridade luminosa, que parecia vir do nascer do mundo, caía do alto sobre a escada. Bati. O Mário demorou a abrir. Ajoelhou-se depois, quando me viu. Eu ajoelhei-me também, encantado com aquele homem de cabelo branco que se comportava como uma criança. Pediu-me para lhe pôr a mão na cabeça. E foi assim, desta forma quase sagrada, que eu entrei em sua casa. O seu quarto estava mesmo ao pé da porta da entrada. As paredes estavam por pintar, escuras da humidade e da nicotina. Em frente da porta, encostada à parede, estava a cama de corpo único, que ele me apontou. – Eis o túmulo – disse. Falámos durante duas ou três horas, sentados na pedra daquela tumba. Fomos interrompidos apenas uma vez, por uma senhora pequenina, de olhos verdes, voz rouca de fumadora, que o veio chamar para tomar os remédios. Era a Henriete, a irmã com quem vivia. Retomámos logo de seguida com o mesmo entusiasmo. Cesariny falou-me como encontrou em 1950 em Amarante Pascoaes, como o começou a ler, como frequentou a sua casa, já no tempo do sobrinho João e da Maria Amélia, como o deu a conhecer a António Maria Lisboa, a Ernesto Sampaio, a Cruzeiro Seixas. Ligava Pascoaes ao surrealismo vivo e eterno, sem escola nem arte, ao mais espontâneo e vivo da imaginação humana. No fim, fez questão de me mostrar no corredor a estante onde tinha os livros de Pascoaes, emprestando-me ao mesmo tempo um livro de Breton que lhe agradava especialmente, Entretiens (1952) e onde segundo ele o surrealismo e o pensamento libertário se davam as mãos com rara felicidade. No meio, por acaso, soltou-se da prateleira um livro de René Guénon, que tinha uma dedicatória do António Barahona. – O António quer ‘ultrapassar’ o Breton, mas o Breton não se pode ultrapassar, porque também não pertence ao Tempo – exclamou ele. Depois disso encontrámo-nos diversas vezes, uma delas, em Dezembro de 2002, na casa de Pascoaes, em Amarante. Tomámos o pequeno-almoço juntos na casa do poeta, servido pela sobrinha Maria Amélia, e depois descemos ao pequeno cemitério de Gatão, onde Pascoaes repousa numa campa rasa, com uma simples lousa, onde se inscrevem dois versos que ele propositadamente escreveu para ali figurarem (cito de memória): de tanta luz apagado/ de tanta palavra mudo. Em todos esses encontros tive sempre da sua parte as mesmas manifestações de amabilidade e graça. Gostava de se expor, de mostrar tudo preto no branco, sem censuras, aberto e directo, mas era de uma correcção quase inexcedível. Recorria menos à palavra grossa e provocadora que ao sonho da catarse purificadora, raramente deslizando para o insulto ou para o desabafo crítico. Tudo nele era inocente e infantil. A última vez que o vi foi a 3 de Maio de 2004 na Cinemateca, na apresentação do filme de Miguel Gonçalves Mendes. Do filme, recordo a cabeça do Mário acompanhada por um rugido de leão; do Mário, lembro a simplicidade atrabiliária com que se voltou para a sala, olhos fechados, quando as luzes se acenderam, dizendo com um encolher de ombros para um público de jovens e piercings: – O poema que se ouve não é mau. Riram os jovens. Pediram-lhe mais palavras e ele exclamou melancólico, entre Bénard da Costa e Miguel Gonçalves: – Tudo isto é lindo, com todos a baterem palmas, a quererem que eu fale, mas o problema é que quando isto acabar vou ter de regressar sozinho a casa. E vocês nem sabem como aquilo para a Palhavã é frio e feio. Era assim o Mário, mais nobre que feroz, mais simples que maldoso, mais santo que sibarita. Partiu agora, de vez, e sem companhia, a 26 de Novembro de 2006. Tinha oitenta e três anos e deixa atrás de si um vazio imenso, porque foi dos últimos a escrever e a pintar com a autenticidade do espírito. Do seu tempo e da sua têmpera restam Cruzeiro Seixas e com certeza Luiz Pacheco, o terrível; depois não se percebe muito bem o que fica nem o que interessa. Tudo o que me resta é abrir o Livro dos Mortos Tibetanos no capítulo décimo segundo, onde estão as palavras por aqueles que partiram. Leio-as e paro no momento em que se pede protecção para aquele que morreu. E faço também um desejo: que o terror da morte, a que o Mário era tão sensível, se possa transformar na clarividência sublime da vida, essa que ele sempre procurou através das palavras, das cores e dos gestos maravilhosos. Com eles esconjurou a miséria mesquinha deste tempo de plástico, dando-nos uma lição sincera de poesia e liberdade.
A primeira vez que falei com Mário Cesariny foi na Mãe-de-Água, às Amoreiras, em Lisboa, no ano de 1990, quando a Assírio & Alvim lançou A Phala especial, dedicada aos cem anos da poesia portuguesa (1888-1988). Recordo um dia de chuva, enevoado e ventoso; quando cheguei, o espaço estava repleto de uma pequena e ruidosa multidão. O Hermínio deu-me um exemplar do volume, onde eu participava com um texto sobre Teixeira de Pascoaes. Folheei-o e daí a nada, à minha frente, falando com um desconhecido, estava o Mário Cesariny, magro e seco. Avistara-o uma única vez, uns anos antes, em 1984 ou em 1985, em Entre-Campos, de cachecol e boné enfiado na cabeça, na festa dos dez anos da revista A Ideia. Eu estava com o Ruy Cinatti e os dois reconheceram-se quando se cruzaram à saída, tirando os bonés e fazendo um ao outro um sorriso infantil. Foi momento comovente que não mais esquecerei. Eu acompanhara o Ruy e o Mário fora decerto o Miguel Serras Pereira que o levara ou que lhe dera a notícia da reunião pois recordo que recitou no espectáculo dois ou três dos seus poemas. Agora, anos depois, surgia ali, mesmo ao meu lado, em cabelo branco, com os traços rijos de um plebeu aristocrata. Havia um cheiro intenso a ceruma verde e como ele estivesse a fumar pensei que era ele que estava de charro na mão. – Ora o Cesariny não faz por menos a festa – entretive comigo. – Vir para o meio do maralhal fumar erva mal seca. Só ele. É um pivete que chega ao Jardim da Estrela. Anos mais tarde, confessou-me que nunca tocara num cigarro de liamba ou em qualquer outra droga e que durante a sua longa vida não bebera mais do que três ou quatro cervejas. O único excesso fora uma aspirina com uma cerveja, nos tempos do Gelo, nos anos cinquenta, e que quase rebentara com ele. – Agora imagine o que teria sido a minha vida, com a paixão que me caracteriza, se eu tivesse experimentado qualquer droga. Nunca mais a largava. Era o inferno – rematou. No fim do lançamento, quando a multidão começava a escoar, reparei que ele se deixara ficar para trás, folheando um livro que lhe haviam dado. Atrevi-me a abordá-lo. Apresentei-me a medo. Ele foi de uma gentileza inexcedível, mostrando-se atencioso e muito atento às minhas palavras. Falámos sobre Teixeira de Pascoaes. Eu conhecia a antologia que ele fizera em 1972 da obra do poeta do Marão, as palavras firmes do seu prefácio, considerando Pascoaes superior a Pessoa. Reafirmou-me os juízos, apimentando-os com saborosas apreciações. Acabara de publicar o Virgem Negra. Estava cáustico. – O Fernandinho foi um talento literário de primeira grandeza. Tinha talento para dar e vender, mas ficou limitado pela tralha do tempo – disse-me ele. – Pascoaes, pelo contrário, não tem tempo; a Lua dele já lá estava na primeira alvorada do mundo e lá há-de ficar no momento em que tudo acabar. É maravilhoso. Pouco tempo depois, voltei a encontrá-lo na cave da Assírio & Alvim, onde ele ensaiava ao piano poesias suas. Recebeu-me com a mesma amabilidade e graça. Aí falámos de António Maria Lisboa e Leonardo Coimbra, via Sarmento Beires. Contestou a possibilidade do pensamento libertário de António Maria Lisboa poder ser aproximado do criacionismo vitalista de Leonardo. Era hipótese que eu levantara num livreco publicado uns meses antes, em 1989, O Mar e o Marão, que lhe fiquei de enviar para casa. Enviei-lhe o livro e recebi telefonema dele agradecendo. Calava os desacordos em nome da liberdade e do coração, disse-me ele. Mais tarde, em 1995, publiquei em edição privada de cem exemplares a Carta a um Amigo sobre Teixeira de Pascoaes e o Cristo de Travassos, dedicada ao Luís Amaro, de que lhe enviei um exemplar e que mereceu desta vez carta e novo telefonema dele. Estava entusiasmado e queria falar comigo cara a cara. O ateísmo contraditório de Pascoaes, que eu explorava nesse texto, interessava-lhe muito; tinha segredos para me revelar. Combinámos um encontro na casa dele para tirarmos tudo a limpo. Pus então pela primeira vez o pé na Rua Basílio Teles, ao pé do Instituto Português de Oncologia. Descobri o prédio dele, baixo e familiar, numa esquina. Tudo aquilo me pareceu conhecido e universal. Subi. O Mário morava no último andar, ao pé da clarabóia de vidro. Era o fim do dia e uma claridade luminosa, que parecia vir do nascer do mundo, caía do alto sobre a escada. Bati. O Mário demorou a abrir. Ajoelhou-se depois, quando me viu. Eu ajoelhei-me também, encantado com aquele homem de cabelo branco que se comportava como uma criança. Pediu-me para lhe pôr a mão na cabeça. E foi assim, desta forma quase sagrada, que eu entrei em sua casa. O seu quarto estava mesmo ao pé da porta da entrada. As paredes estavam por pintar, escuras da humidade e da nicotina. Em frente da porta, encostada à parede, estava a cama de corpo único, que ele me apontou. – Eis o túmulo – disse. Falámos durante duas ou três horas, sentados na pedra daquela tumba. Fomos interrompidos apenas uma vez, por uma senhora pequenina, de olhos verdes, voz rouca de fumadora, que o veio chamar para tomar os remédios. Era a Henriete, a irmã com quem vivia. Retomámos logo de seguida com o mesmo entusiasmo. Cesariny falou-me como encontrou em 1950 em Amarante Pascoaes, como o começou a ler, como frequentou a sua casa, já no tempo do sobrinho João e da Maria Amélia, como o deu a conhecer a António Maria Lisboa, a Ernesto Sampaio, a Cruzeiro Seixas. Ligava Pascoaes ao surrealismo vivo e eterno, sem escola nem arte, ao mais espontâneo e vivo da imaginação humana. No fim, fez questão de me mostrar no corredor a estante onde tinha os livros de Pascoaes, emprestando-me ao mesmo tempo um livro de Breton que lhe agradava especialmente, Entretiens (1952) e onde segundo ele o surrealismo e o pensamento libertário se davam as mãos com rara felicidade. No meio, por acaso, soltou-se da prateleira um livro de René Guénon, que tinha uma dedicatória do António Barahona. – O António quer ‘ultrapassar’ o Breton, mas o Breton não se pode ultrapassar, porque também não pertence ao Tempo – exclamou ele. Depois disso encontrámo-nos diversas vezes, uma delas, em Dezembro de 2002, na casa de Pascoaes, em Amarante. Tomámos o pequeno-almoço juntos na casa do poeta, servido pela sobrinha Maria Amélia, e depois descemos ao pequeno cemitério de Gatão, onde Pascoaes repousa numa campa rasa, com uma simples lousa, onde se inscrevem dois versos que ele propositadamente escreveu para ali figurarem (cito de memória): de tanta luz apagado/ de tanta palavra mudo. Em todos esses encontros tive sempre da sua parte as mesmas manifestações de amabilidade e graça. Gostava de se expor, de mostrar tudo preto no branco, sem censuras, aberto e directo, mas era de uma correcção quase inexcedível. Recorria menos à palavra grossa e provocadora que ao sonho da catarse purificadora, raramente deslizando para o insulto ou para o desabafo crítico. Tudo nele era inocente e infantil. A última vez que o vi foi a 3 de Maio de 2004 na Cinemateca, na apresentação do filme de Miguel Gonçalves Mendes. Do filme, recordo a cabeça do Mário acompanhada por um rugido de leão; do Mário, lembro a simplicidade atrabiliária com que se voltou para a sala, olhos fechados, quando as luzes se acenderam, dizendo com um encolher de ombros para um público de jovens e piercings: – O poema que se ouve não é mau. Riram os jovens. Pediram-lhe mais palavras e ele exclamou melancólico, entre Bénard da Costa e Miguel Gonçalves: – Tudo isto é lindo, com todos a baterem palmas, a quererem que eu fale, mas o problema é que quando isto acabar vou ter de regressar sozinho a casa. E vocês nem sabem como aquilo para a Palhavã é frio e feio. Era assim o Mário, mais nobre que feroz, mais simples que maldoso, mais santo que sibarita. Partiu agora, de vez, e sem companhia, a 26 de Novembro de 2006. Tinha oitenta e três anos e deixa atrás de si um vazio imenso, porque foi dos últimos a escrever e a pintar com a autenticidade do espírito. Do seu tempo e da sua têmpera restam Cruzeiro Seixas e com certeza Luiz Pacheco, o terrível; depois não se percebe muito bem o que fica nem o que interessa. Tudo o que me resta é abrir o Livro dos Mortos Tibetanos no capítulo décimo segundo, onde estão as palavras por aqueles que partiram. Leio-as e paro no momento em que se pede protecção para aquele que morreu. E faço também um desejo: que o terror da morte, a que o Mário era tão sensível, se possa transformar na clarividência sublime da vida, essa que ele sempre procurou através das palavras, das cores e dos gestos maravilhosos. Com eles esconjurou a miséria mesquinha deste tempo de plástico, dando-nos uma lição sincera de poesia e liberdade.
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