sábado, 7 de julho de 2007

Escaparate (1)

Congeminações de um neo-pitagórico, de António Telmo
Al-Barzakh, 2006

Alexandre Teixeira Mendes

Sob o signo de Pitágoras

Inaugurando as edições Al-Barzakh , apareceu agora, numa edição limitada de 50 exemplares, o livro de António Telmo “Congeminações de um neopitagórico”. Fica-se com a impressão, ao ler estas páginas, de que a abordagem dos diversos textos exige à primeira vista o articular da “prima philosophia” (assimilável a uma hermenêutica) para se apreender a instância da letra – os traços diferenciais e constituintes duma obra - onde se interpela sobretudo a razão poética, razão criadora. Na realidade, os “scripta” deste autor exigem uma atenção à linguagem audaciosa - enquanto expressão “iniciática” - e o assegurar do seu itinerário para cobrir o domínio que desejamos falar.

Da patriosofia

A relevância deste autor da “sophia”- a filo-sofia - que re-pensou e interpretou o “logos” e “ontos” português - é geralmente lembrada em termos de sua capacidade de oferecer uma leitura da “História Secreta de Portugal” (Editorial Vega, Lisboa, 1977), articulando “Razão” e “Mistério”. O problema que subjaz a esta discussão - a nossa “autognose” - é antigo, e seu tema foi repetido em diversas variações sobretudo pela doutrinação periodística do “57” (na essencialização do movimento da “Renascença Portuguesa”). Tratou-se aí de um grupo estabelecido e definido - o “Movimento da Cultura Portuguesa” - que re-colocou em discussão, nos anos 50-60, a problemática dos fundamentos ônticos e lógicos da Filosofia Portuguesa. Entendida assim a questão surge de uma compreensão da “lógica dos arcanos” e, portanto, da “patriosofia” (presente nomeadamente na obra de António Quadros ou Dalila Pereira da Costa). Já houve quem apresentasse António Telmo como “parte duma raríssima linhagem de poetas e pensadores obscuros que têm procurado desenvolver uma tradição órfica primordial, emque o canto e a palavra aparecem como a salvação do mundo” (António Cândido Franco, “O Filho de Orfeu (Gramática Secreta da Língua Portuguesa)” in António Telmo e as Gerações Novas, p. 77). Os seus escritos e a sua obra está in via.

Os mecanismos da iniciação

A filosofia, segundo António Telmo, exige iniciação. Pois bem! Não há interpretação sem iniciação. O termo “iniciação”- que se presta, por vezes, a equívocos - , deriva do latim initium, significa “começo” e também “entrada”. À luz destas considerações compreender-se-á melhor o termo “irmão”, adelphos, que é utilizado, mesmo em Elêusis, para os que se iniciam juntos. A iniciação - no itinerário do pensamento de António Telmo – começou assim, em definitivo, a partir do magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho (revelou-se de modo luminoso na sua aventura no Brasil com Agostinho da Silva). O nosso autor - conhecido pela sua formação clássica e filológica - é hoje o exemplo típico da “fusão de horizontes” que extrai seu próprio poder da tradição cultural e esotérica de Portugal - e cuja base filosófica ou temática se move, em sentido estrito, no âmbito heterodoxo, inicialmente numa amálgama da tradição unânime, que se torna, num segundo estágio, aproximação ao substracto metafísico do hermetismo (tendo em conta o longo processo conhecido genericamente como “iniciação”). Nos seus primeiros escritos e posteriores justifica-se essa tradição portuguesa - de um logos mais poético-profético que noético - que Álvaro Ribeiro identificou com a Santa Kabbalah.

Kabbalah, sufismo e joaquimismo

António Telmo situa-se, na realidade, em face de três enfoques: a kabbalah, o sufismo e o cristianismo dos espirituais da Idade Média (joaquimismo). Repetidas vezes se assinalou a sabedoria mística - esotérica e secreta - expressa através dos tempos. É mais que sabido que o cabalista ambiciona captar o que anda escondido: nesse horizonte das visões e das revelações tende à purificação pessoal. Aliás, o mundo do tempo surge, aos olhos do cabalista, como exílio. Convém não esquecer que Israel está em exílio, a Criação de Deus está em exílio, cada alma, vestida de um corpo terrestre que o separa do Um, está em exílio. Requer-se uma via de iniciação e de sabedoria. É suficiente que, de uma ou outra maneira, busquemos a re-integração (o retorno à origem)? A kabbalah - enquanto tradição oculta ou esotérica dos Hebreus - seguiu seu curso porque chegamos a levar em conta o grau em que os processos psicológicos estão presos pelos temas da ambiguidade da linguagem criadora de mundos. Importa porém tentar aqui uma aproximação ao sufismo: a espiritualidade ou mística da religião do Islão subversiva para o legalismo e o literalismo. De facto, trata-se de um termo que foi relacionado à palavra grega sophia que significa sabedoria, e à palavra árabe saf, que significa pureza, sendo que esta última também se refere às vestes puras, de lã, usadas por alguns sufis. Para o sufismo o protótipo do verdadeiro crente é o viandante. Os sufis são gente no caminho e o sufismo é declaração de amor. Daí também ter tentado a seu modo a activação plena de Deus no homem. Caracterizar o sufismo como realização da unidade de Deus leva, naturalmente, a falar da substancial unidade de todas as religiões e da confiança no futuro da humanidade. É preciso ressaltar que os seus ensinamentos são antiquíssimos e referem-se ao despertar (na circunvizinhança da ideia de conversão que tem por modelo o texto do Qu’ran). O fenómeno a que chamamos dervixes, ou seja, monges viandantes - literalmente aqueles que rezam (ou procuram) na soleira (entre os mundos) - é uma das manifestações da irmandade que provém de Rûmî. Por sua vez, o evangelismo apregoado pelo abade cirterciense Joaquim de Fiori, no século XII, como se sabe, foi baptizado como a “Nova Idade do Espírito”. A sua síntese “dialéctica” e “precursora” de Hegel toma contacto com a realização ou cumprimento de palavras e promessas: o “pléroma” do Novo Testamento. Joaquim de Fiori, não obstante a sua filiação à tradição patrística e agostiniana, aproxima-se dos dissidentes e hereges ao serviço do dinamismo do Espírito. Os argumentos do joaquimismo e do “Evangelho Eterno” – para justificar novas “idades” ou novas “eras” – foram retomados contemporaneamente por Agostinho da Silva.

“Versos Dourados”

Impõe-se, portanto, uma noção preliminar para explicar o título deste livro de António Telmo: a doutrina pitagórica e a tradição numerológica-hermética. Pitágoras mais não fez que dar forma ao dogma da perfeição da esfera que atravessou os séculos. Lembra-nos, em mais de um pormenor, que a esfera inclui em si todas as figuras possíveis. A sua teorização não abrangeu em vão a astronomia explicativa e geométrica em um contexto particular, historicamente circunscrito. O entrelaçamento de duas formas de espírito, que geralmente se excluem -, o espírito científico e o espírito místico -, passam por este pensador natural de Samos (527 antes da era comum). Pitágoras não era somente o taumaturgo, mas o mistagogo sagaz onde, por assim dizer, ganha relevo o génio matemático cujos raros extractos e fragmentos chegaram até nós. Mas entre todas as fontes de Pitágoras, merecem menção especial os “Versos Dourados” ou “Versos de Ouro” (de que conhecemos a versão de José Blanc de Portugal). Parece-nos útil assinalar, porém, o precursor da ciência dos números e figuras que - na opinião avalizada de Proclo – transformou a geometria em um ensinamento liberal. Poderíamos ainda fazer alusão a os mysteria, adentro dos termos-chave do conhecimento teórico como via da salvação (soteria). Como já observamos, é-nos completamente impossível apresentar na sua totalidade os aspectos da religião astral do mundo antigo - a visão da imortalidade celeste das almas - e do pitagorismo. Vistas as coisas o mais rigorosamente possível, o pitagorismo, segundo Louis Rougier, forneceu um quadro maravilhosamente apropriado às religiões de mistério e às economias da salvação que desbordaram do Oriente sobre o mundo mediterrâneo depois da conquista de Alexandre (La Religion Astrale dês Pythagoriciens). O pitagorismo moderno tem pelo menos uma coisa boa: suscitar a re-descoberta da chamada geometria esférica. Trata-se da filiação a uma tradição que nos remete a um corpus metafísico próximo do antigo “saber imutável”.

Da tradição hermética

A “Ars Magna”, também chamada “Grande Obra”, é o objectivo de todo “filho de Hermes”. Ora, a arte de interpretação remete-nos à figura de Hermes, mensageiro divino, o qual cabe a tarefa de traduzir a vontade dos deuses para a língua humana. Agora se torna, talvez, mais claro qual é a herança em que se inscreve António Telmo - descendente em linha directa dos “Cabalistas da Noite” - e cujo reportório, por exemplo, nos remete ao Sefer HaZohar, que se traduz como “O Livro do Esplendor”. Torna-se crucial distinguir aqui a escritura e a arquitectura de uma obra a partir de um centro: a “Escola Portuense”. Isto me parece ainda mais importante hoje, quando se torna imperioso acentuar – com vista a ulteriores reflexões – que nela se privilegiavam duas distinções: a distinção entre o ensino escrito e o ensino oral, por um lado; a distinção entre escritos exotéricos e escritos esotéricos, de outro. O autor de "Arte Poética”, superando e reassumindo o espírito visionário e messiânico de Bruno, tem vindo a re-assumir, por assim dizer, o pensar de Platão e Aristóteles. Estamos aqui, na realidade, em face de uma reflexão que encontra o seu significado no facto de assimilar as três tradições abrahámicas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, também chamadas de “tradições do Livro”. Este conjunto de ensaios vem esclarecer os termos dos problemas referentes a um questionamento (para usar a terminologia de Henry Corbin) de “espaços visionários e “geografias imaginais”. Não discutiremos aqui as interpretações apresentadas, o que nos afastaria do nosso propósito; contentar-nos-emos em ressaltar a admirável “Carta ao Pedro Sinde um dos doze”, um dos clássicos “Diálogos de Thomé e Nathan” e as anotações “Em torno d`Os Lusíadas e de Camões” ou “À volta de Platão” (Crátilo ou o Mistério da Palavra”) que alcançam a sua originalidade.

Originalmente publicado nos blogues Ladina e Incomunidade.

1 comentário:

Ruy Ventura disse...

Mesmo quando não estamos de acordo com António Telmo, vale sempre a pena lê-lo.