sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Sampaio Bruno

(30 de Novembro de 1857 – 11 de Novembro de 1915)

Só um homem em Portugal mostra compreender: Sampaio Bruno.
Fernando Pessoa

terça-feira, 27 de novembro de 2007

No signo do 7 - 150 anos de Filosofia Portuguesa

Sesimbra, 24 de Novembro de 2007. Pedro Sinde e António Telmo no lançamento de Contos Secretos.
A anteceder o colóquio A Filosofia Portuguesa Hoje, com que se encerrou o ciclo comemorativo dos 150 anos da Filosofia Portuguesa (realizado, entre Março e Novembro, na Biblioteca Municipal de Sesimbra), teve lugar, no passado sábado, dia 24, o lançamento do livro Contos Secretos, de António Telmo. A obra foi apresentada por Pedro Sinde, numa sessão que contou ainda com a presença do autor, bem como do pintor Espiga, que ilustrou o volume, e de Manuela Morais, que, com a chancela da Tartaruga, o editou. A fotografia foi-nos gentilmente cedida por João Aldeia, autor do blogue Sesimbra.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Bellum sine bello


Carta a Pedro Sinde

António Cândido Franco

Évora, 20 de Novembro de 2007


Caríssimo Pedro Sinde

Peço-te antes de mais desculpa da demora desta carta, que há muito te devia em resposta a outra tua de 7 de Julho. Encurtando razões, digo-te que a necessidade e a urgência de te responder nunca se ausentou do meu espírito e é com muito gosto que estou tentando responder às tuas perplexidades.

Começo pelo surrealismo. O surrealismo tem de ser encarado a partir da sua etimologia e a partir das suas manifestações. A etimologia das palavras não nos pode servir nuns casos e noutros não; em todos, ela ilumina o sentido da palavra, que pode estar mais ou menos obscurecido pelo tratamento humano mas nunca de todo ausente. No caso estamos de acordo que a etimologia de surrealismo nada tem a ver com a ideia do que está por baixo do real, mas antes com o que está para ou por cima. É esse inegavelmente o sentido original do surrealismo e é esse que se encontra nas suas obras mais representativas e importantes. Caso a tradução portuguesa da palavra não te agrade, podes escolher o termo sobre-realismo, que foi usado por muitos em portuguesa língua, entre eles por Agostinho da Silva.

Quanto à confusão entre ‘su’ e ‘sub’, e até em língua francesa entre o ‘sur’ e o ‘sous’, quer dizer, a confusão entre ‘surrealismo’ e ‘sub-realismo’, não a sinto como dizes. Se eu aceitasse tal confusão, teria de aceitar também que ela se estabelece, pela proximidade fonética, entre ‘sob’ e ‘sobre’. Quer dizer, não veria diferença entre palavras como ‘sobrenatural’ e ‘subnatural’. Ora não é isso que acontece no meu caso e creio que no teu também. Sei distinguir, quer no plano do sentido, quer no plano dos sons, entre ‘sob’ e ‘sobre’, como sei distinguir em língua francesa entre ‘sur’ e ‘sous’ e no caso português entre ‘surrealismo’ e ‘sub-realismo’. A distinção entre os fonemas, de quaisquer fonemas, é subtil, de pormenor, mas existe. Será que tu confundes entre trevo e treva? Entre nada e nata? Não creio. É por isso que o argumento do meu ponto de vista é forçado. Tu queres teimosamente ter razão e para isso recorres a essa confusão, fácil de fazer mas difícil de aceitar. Nestas coisas não vale ser teimoso e por isso te peço que reconheças o valor inato e original que a palavra tem, quer na portuguesa língua, quer na francesa.

Por tudo o que vai implicado no que acabo de dizer, a descida aos infernos de que falo a propósito do surrealismo deve ser encarada como uma procura dos arcanos e não como um simples entretenimento turístico à procura do abjecto, com viagem de ida e volta. Ela concorda com tudo o que dizes na tua carta sobre o assunto. Se dei a entender outra coisa, a culpa não é do surrealismo mas apenas da minha expressão insuficiente, que não conseguiu estar à altura das ideias de que falava.

Quanto às relações da Filosofia Portuguesa e do surrealismo já percebeste pelas palavras do Ruy Ventura que aquilo que dizes acerca da primeira podes dizê-lo do segundo. O surrealismo nunca pretendeu ser um movimento, mas a causa mesma do movimento, para usar as tuas palavras. Basta pensares num exemplo tão comezinho como este. Natália Correia quando pretendeu fazer uma Antologia do surrealismo português não foi a Cesariny, a António Maria Lisboa ou aos possíveis precursores destes; recuou aos primeiros momentos literários portugueses da Idade Média. O surrealismo está fora do tempo; pertence à eternidade. Estamos na verdade a falar do que está acima do real. Trata-se dum caso muito sério. O surrealismo não envelhece; é uma ideia que anima desde e para sempre a vida.

Por fim, vejamos o que chamas o ataque de Mário Cesariny à Filosofia Portuguesa. Não sei se trata dum ataque ou tão-só duma incompreensão ou até, mais simples, dum equívoco. Seja como for, também essas palavras me incomodaram quando, há muitos anos, pela primeira vez as li. No prefácio que escrevi para as poesias completas de Mário Beirão, e publicado pela Imprensa Nacional em 1996, abordo a questão de raspão. Assim como assim, o que aí digo a propósito do autor de O Último Lusíada pode ser alargado às relações de Cesariny com a Filosofia Portuguesa.

Uma coisa é certa, não me esqueço que uma ponte liga duas margens em ambos os sentidos. Tanto me incomodam as incompreensões para com o surrealismo e as suas obras como as injustiças para com a Filosofia Portuguesa e os seus autores. Recebe o abraço amigo de quem muito te estima e te escuta e lê sempre com o maior prazer e atenção

A. Cândido Franco

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Pensando à bolina (11)

A Casa Albano

Pedro Sinde

Na terra onde vivo há, como em todas as terras, uma casa da sorte onde se vende lotaria e coisas afins, onde se vende a "sorte". O lema destas casas é o de que só sai a sorte a quem joga.
No jogo da vida estamos todos envolvidos, queiramos ou não, joguemos ou não, porque se não jogamos a vida, é ela que joga connosco. Muitas vezes cremos que somos nós a jogá-la e é ela, no entanto, quem joga em nós.
Nunca gostei, porém, da comparação da vida com o jogo, porque sempre me pareceu entrever aí o perigo de a tomarmos por uma coisa lúdica (hoje todos parecem ter como fim último da vida a diversão!), quando o papel do homem é o de ser uma ponte entre o natural e o sobrenatural. Para dizer isto bem dito, nem devia falar em "natural", pois nada na vida o é, só os nossos olhos pobres precisam do descanso da luz sobrenatural para se refugiarem na sombra do natural; assim é que chamamos "natural" àquela parte do sobrenatural com a qual convivemos diariamente. Se víssemos a vida como sobrenatural sempre, isso implicaria uma mudança radical no sentido das nossas vidas; não estamos, todavia, interessados em mudanças destas.

Mas voltemos à Casa Albano; nessa casa onde se vende a taluda, o totoloto, o totobola, o euromilhões e tudo o que se possa pensar nesta gama, também se faz uma outra coisa muito curiosa. Nos seus grandes vidros afixam-se, mesmo ao lado dos números premiados, os anúncios necrológicos; de tal modo que, nas suas montras, as mesmas pessoas procuram os números para ver se lhes saiu a "sorte grande" e o nome do último "sorteado", levemente deliciadas com a certeza de que nunca verão ali o seu nome.

Se a taluda sai a poucos, já aquela outra sorte, essa sim grande, imensa, tremenda, sai a todos. Vejo na Casa Albano, de mãos dadas, a imagem paradoxal da pródiga dama segurando o corno da abundância e a ceifeira terrível de gadanha na mão; ambas sorriem e os transeuntes não sabem se serão os próximos a ganhar o sorteio ou a ser sorteados.

Uma ligação estranhamente profunda parece haver entre ambas, como se filhas do mesmo pai, como se divisão de uma mesma energia, como se dois extremos que se tocassem; enfim, uma pescadinha de rabo na boca, que é o nome que o povo português dá à hermética serpente Ouroboros.

Ao passar ali todos os dias, só eu pareço, no entanto, não querer nada nem com uma nem com outra, discretamente acelerando o passo no outro lado da rua.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Pensando à bolina (10)

Da não existência da filosofia portuguesa

Pedro Sinde

Não há filosofia portuguesa. É um dado evidente. É quase um facto. Basta olhar para os autores da filosofia portuguesa para ver que ela não existe. Vejamos.

Sampaio Bruno é um gnóstico que trata as ideias platónicas como Aristóteles estudaria uma planta (não nos fala ele na eclosão da ideia na alma do génio?); e, como se não bastasse, acredita que a humanidade inteira será um dia o messias, o D. Sebastião esperado.
Leonardo Coimbra rejeita todos os sistemas de filosofia como formas de "cousismo", isto é, como momentos de paragem do movimento e propõe uma filosofia que é a sua própria negação: uma filosofia do movimento, em que cada nova forma supera a anterior. Deste modo recusa implicitamente a existência de sistemas, a não ser como momentos provisórios.
Álvaro Ribeiro propõe uma filosofia que é uma teologia, um caminho para Deus, um caminho de santidade; os que só vêem à superfície chamam-lhe, para o denegrir, neo-aristotélico, não vêem que isso é apenas a capa sob a qual se esconde um pensamento tremendamente revolucionário.
José Marinho é um místico de uma lucidez extrema, mas de uma lucidez que tem pudor em mostrar-se como tal e, por isso, nunca edificaria um sistema.
Agostinho da Silva, enfim, foi o que foi, ninguém sabe o que foi e, por isso, chamam-lhe comunista, monárquico, anarquista ou franciscano, budista, taoísta. Tudo isso cabia na sua alma imensa, mas ele mesmo não era nada disso; acreditava no quinto império e entendia que os portugueses tinham por missão mostrá-lo ao mundo.

É por isso que há dois tipos de inimigos da filosofia portuguesa: alguns dos que dizem que ela existe e todos os que dizem que ela não existe. Os primeiros tentam encontrar um sistema e teses que dêem unidade à diversidade magnífica, como se dissessem que todas as plantas têm tronco; os segundos comparam-na com o pensamento sistemático alemão ou francês e não encontram nenhum sistema de filosofia português; e têm razão, porque eles chamam filosofia precisamente ao que vêem na Alemanha, na França, em Itália e, agora muito em voga, nos Estados Unidos.
A verdade é que a filosofia portuguesa não tem nada a ver com isso e é desta perspectiva que podemos dizer que ela não existe, pois, graças a Deus, não há um sistema de filosofia portuguesa.

Agora vou dizer, só na aparência, o contrário do que disse: há filosofia portuguesa, é evidentíssimo que há, mas ela não pode ser pensada a partir dos moldes habituais. A nossa filosofia é aquela que, como diz quem chamou a atenção para ela
– Álvaro Ribeiro –, está escondida na nossa literatura, na nossa arte, na nossa arquitectura, na nossa paisagem, no nosso mar, na nossa sabedoria popular e até nos nossos filósofos. Poderia ter-lhe chamado pensamento português ou tradição portuguesa, mas com isso não teria concitado a atenção à volta do tema; teria sido uma intervenção mais ou menos inócua. Ao chamar-lhe filosofia portuguesa conseguiu irritar a academia e isso foi bom para que as águas se agitassem.

A filosofia portuguesa é uma floresta muito variada, todos os seus autores têm a lucidez de saber que não podem edificar um sistema. A filosofia portuguesa é a mesma dos nossos descobridores: partem nas caravelas do pensamento e vão vendo o que lhes aparece nessa aventura; estão em movimento e só desse modo vão descobrindo os brasis, as índias e parece que até as austrálias da alma; num momento aproximam-se daqui e noutro dali, mas sabem que não são nem daqui nem dali. Não é à toa que os portugueses saíram de Portugal assim que o conquistaram. O português é um viajante, um peregrino e, por isso, quando pensa o mundo, isto é, quando filosofa, é como se navegasse.

Assusta-me ver a filosofia portuguesa nas universidades. Tenho a esperança de que, apesar disso, nunca cheguem a inventar um sistema de filosofia portuguesa, porque enquanto não houver sistema haverá perguntas, quando houver sistema haverá respostas. Prefiro a beleza do perguntar à estultice do responder, quer dizer, do julgar que se sabe ao ponto de ter respostas; porque, como os nossos nobres navegadores, estamos a procurar e, assim que descobrimos o que procurávamos, logo partimos para outro lugar. É preferível a cegueira de achar que não existe filosofia portuguesa, ao acreditar que ela existe e querer enfiá-la num corpete, retirar-lhe aquilo que fundamentalmente a caracteriza: o amor da liberdade de pensar e até de se contradizer, se for caso disso.

sábado, 3 de novembro de 2007

Pensando à bolina (9)

A montanha inatingível

Pedro Sinde


Carlos Aurélio: Estrela, o manto do céu. Hesed
Caminhei por vales e montes, mas não cheguei à montanha. Não quiseste que subisse até ti, que olhasse o panorama distante, longe dos homens, que se avista do teu cimo. Não quero saber por que enviaste aquele dilúvio; agradeço-te até por não ter chegado. O que é chegar, afinal, senão a ilusão de julgar que se chegou?, a tristeza de se ter chegado?

O peregrino que chega à sua Jerusalém, chora quando chega, chora porque chega, chora porque quer já partir novamente, chora, enfim, porque no íntimo de si sabe que não chegou, sabe que nunca poderá chegar; e de estação em estação, de Jerusalém em Jerusalém, continuará a caminhar. Ele parece amar o destino para que se encaminha, mas não é assim, ama mais ainda o caminho, porque o destino é o mesmo para tantos outros, mas o caminho é só dele.

Tu, montanha alta, serás a minha Ítaca. Serás a mais alta das montanhas, a inatingível. Em cada lugar por onde passe, será sempre o teu cerro que procurarei. Pobres dos que crêem que, por terem subido, chegaram a ti. Não sabem que ninguém pode subir a montanha, que a montanha não se sobe; na ilusão da subida nem reparamos que é ela quem bondosamente desce até nós.

O homem, peregrino, caminhante, aspira a qualquer coisa que nunca chega a encontrar plenamente. O que procura não é deste mundo. Uma ânsia, a que em português se chama saudade, vibra como uma chama no mais íntimo da sua alma; é essa chama o seu guia.