terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A sombra de Eurídice (5)

Morte e Ressureição

Carlos Aurélio

Contigo, minh’alma, desci
Até aos confins da incompreensível dor,
Por abruptas feridas abertas de cor,
Em ti me perdi e me achei de memória.
Memória, essa agulha que cose, essa faca que corta
Coisas e loisas, vidas, lixo e chicória,
Esse sangue corrido, fendido,
Essa voz ouvida, enrouquecida,
Memória, esse silêncio que engendra a vida já morta.

Fui contigo de mão dada
Visitar a dor, cego e seco em meu desalento,
Desci sem lágrimas o declive que sugava
Até às goelas escancaradas, ó infernal tormento!
Desci, desci sempre,
Empurrado por mim, puxado p’lo diabo,
Até que, farto, estanquei e disse: “Aqui acabo!
Já não vejo céu que me levante.
Onde és, meu Deus?...Como vou adiante?”


Chamei-te, ó pedra surda,
Ainda vi luz e orvalho ─ estou a lembrá-lo.
Ansiei por ti, ó morte, sombra da árvore bendita,
E também te vi cansada, desdita.
Falavas com o vento, ias tu consolá-lo.
Disse adeus e abracei-vos, ó céus,
Juntei as mãos e pus-me todo dentro delas,
Ergui-as já secas, ardendo lúgubres como velas,
E assim desci, consumido em mortalhas e véus.

Gritei por ti, ó andorinha fugidia,
E só vi penas negras, no céu as primeiras
Asas que, com o meu Anjo me alembravam
As preces de Jesus no Horto das Oliveiras.
Subi, subi sempre,
E clamei por vós, gente irmã,
Olhares tardios do amor abandonado,
Rostos baços de vida vã,
Calvário sem Domingo ressuscitado.

Até que por ti, ó Espírito, então reconheci:
Morri e, enquanto anoitecia, já era o sol que se erguia.
Ei-lo pujante, hóstia solar, a verdadeira,
Vi-o a levantar-me da cama derradeira.
Contigo minh’alma então sim, vivi,
E perguntei aos choupos e vendavais:
“Que milagre é este? Morro de pé, bem o sei!”
E eles assim mudos, silentes e sem ais,
Me disseram: “É a tua voz que te acorda,
a do sol,
a do teu Cristo e teu Rei!”

1 de Dezembro de 2007

Sem comentários: