terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Escaparate (4)

Quando o Senhor andava pelo mundo…
Sobre o Jesus Cristo em Lisboa,
de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes

Pedro Martins

1. A recente reedição, com a chancela habitual da Assírio & Alvim, da peça teatral Jesus Cristo em Lisboa, uma tragicomédia em sete quadros, originalmente publicada em 1927, e que é o fruto singular de uma parceria proveitosamente firmada, nos anos 20 do século passado, entre Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, veio permitir a redescoberta de um título algo esquecido nas bibliografias de ambos. Ao estigma deste olvido não terá sido estranho o facto de quase nunca a peça ter sido levada à cena, tendo mesmo ficado por representar logo nas suas primícias. Com efeito, não chegou a realizar-se o desejo dos autores de a verem subir ao palco do Teatro Nacional de D. Maria II, e para tanto terá pesado sobremaneira a crítica acérrima à classe política que a obra veicula (na verdade, são os políticos portugueses os algozes do regressado Jesus), tanto mais que se estava no período inaugural da Ditadura Militar instaurada pelo golpe de 28 de Maio de 1926, antecâmara do salazarismo.

Ficamo-lo a saber pelo notabilíssimo trabalho editorial de Pinharanda Gomes, que além de ter reunido, para a presente edição, um acervo documental, tendencialmente exaustivo, que permite avaliar a recepção da obra, nos oferece ainda, em posfácio intitulado Jesus Cristo em Lisboa, Um Auto Messiânico, um aturado ensaio sobre a tragicomédia. No conjunto, são noventa páginas adicionais com preciosos informes, indispensáveis à melhor compreensão do auto de Brandão e Pascoaes. Um traço saliente que emerge da sua leitura é o respeitante à celeuma que o livro desencadeou junto de alguns círculos católicos, como os que eram representados pelo jornal A Voz, um diário da capital em cuja edição de 24 de Janeiro de 1928 surge inserta violenta notícia sobre o Jesus Cristo em Lisboa. Nela se previne os leitores “de que o livro dos Srs. Pascoaes e Brandão não deve ser comprado nem lido pelos católicos”. O escrito, em que se transcreve parte de um artigo publicado, na véspera, no Diário de Lisboa, chega a ser insultuoso para os dois escritores (a quem se atribui, pasme-se, um estado de acentuada decadência!).

Pascoaes não gostou, e escreveu de imediato ao periódico católico. Poucos dias depois, dará a resposta devida ao Diário de Lisboa, já subscrita também por Raul Brandão. A tónica que perpassa as duas reacções pode resumir-se nisto: não há na peça o menor ataque a qualquer dogma da Igreja, antes o intuito de acordar o espírito cristão no meio social. Não é heresia representar Jesus num trabalho literário, como o não é pintar ou esculpir a figura de Cristo.

A verdade é que não se vislumbram sinais heréticos neste livro admirável. Não será de crer que dois dos mais poderosos criadores literários portugueses do século XX tenham amiúde e insistentemente citado trechos dos Evangelhos (sobretudo do de Mateus, mas também dos restantes) para encobrirem supostas carências da sua imaginação. A pertinácia com que as personagens de Pascoaes e Brandão actualizam, pela palavra ou pelo gesto, as passagens do Novo Testamento, parece radicar no propósito preciso de colocar a acção dramática em perfeita conformidade com os ensinamentos de Cristo.

2. Mas a evidente ortodoxia desta obra não significa, porém, que nela se deixe de questionar seriamente a Igreja Católica – ao contrário do que em diferentes momentos foi sendo aventado. No meu entendimento, os instantes finais do primeiro quadro, em que Jesus e um pároco de aldeia se interpelam mutuamente, e todo o quinto quadro, passado na catedral de Lisboa (e que parece ser da exclusiva lavra de Pascoaes), são, a este propósito, bem mais significativos do que, um tanto apressadamente, e a uma primeira impressão, se possa julgar.

No quadro inicial da peça, passado na serra, o acolhimento de Jesus no seio de uma cozinha aldeã onde se encontram vários jornaleiros não pode deixar de surpreender: este homem não sabe salvar e os seus dizeres são estranhos, mas também sublimes e, por isso, as suas palavras arrebatam os pobres. Chamado a intervir pela dona da casa, o reitor local faz notar a Jesus que não entrou na igreja, ao passar pela estrada, ao que o Redentor lhe responde ter rezado, no caminho, a seu Pai que vê tudo o que se passa e nos dará a paga. Que o regressado Cristo, não se tendo ainda manifestado como tal, comece por ignorar ostensivamente a “sua” Igreja, antepondo ao culto institucional uma pessoalíssima visão da relação do homem com o divino, é, já de si, circunstância muito significativa, que há-de ser ponderada à luz da matriz priscilianista que confessadamente condiciona o pensamento de Pascoaes.

Acto contínuo, o sacerdote dirá a Jesus já ter visto que ele fala muito e sabe demais; que certas cousas não se fizeram para todos os homens; e que ele é um pobre soberbo. Mas, quase de seguida, Jesus, segundo nos mostra a indicação cénica, chama o sacerdote, “atrai-o a si, fala-lhe ao ouvido e deixa-o atónito, a encará-lo”. Acabou, por certo, de lhe dizer algo com que revelou, para além da dúvida, a sua divina identidade. Percebe-se que o padre vacila, mas, interpondo-se no seu caminho, acaba por impedir os pobres aldeões de acompanharem o Redentor. Vale a pena transcrever toda a fala do reitor:

“Nem um passo! E diante do ímpeto para a porta que Jesus transpôs atira-lhes com o escabelo de mesa para as pernas. Ninguém sai! Então, eu baptizo-vos, eu caso-vos, eu acompanho-vos na vida e na morte, a vocês, às vossas mulheres e aos vossos filhos – levo-vos com os olhos fechados, através desta vida, e vocês querem-me deixar por ele? Sobe os degraus, abre os braços diante do grupo, que estaca na arremetida: Aqui não passa ninguém!”

Pouco depois, no final do quadro, o sacerdote, “sempre à porta, deixando cair os braços”, dirá, muito significativamente:

“Por vossa causa meti talvez a alma no inferno”.

Na sua singeleza, tão breve quanto aparente, o episódio do recontro entre o reitor e Jesus reveste-se de uma dimensão tremenda. De um lado, o apelo exaltante e libertário a uma experiência religiosa permanentemente vivida na pureza das coisas essenciais, que nos é feito por Jesus, e que convoca o lastro priscilianista, joaquimita e franciscano patente sobretudo na obra de Pascoaes; do outro, o irresistível apego mundano do sacerdote à segurança confortável de uma rotina mecânica e degradante, mas agora já inquinado por uma má consciência perturbadora, que dá a imediata medida da decadência. Essa má consciência não diverge essencialmente do incómodo que, calculista ou sincero, iremos reencontrar na mulher do comissário da polícia (no segundo quadro) ou nos políticos (reunidos no quarto quadro) que, a final, decidem matar Jesus. Não há diferença de natureza, ou sequer de grau; apenas a projecção de um enfoque privilegiado sobre uma determinada classe, porventura por razões tácticas, decerto inconfessáveis a quem o curso dos anos ensinara a prudência das serpentes como regra de vida.

Com efeito, a dificuldade invencível do reitor provinciano em deixar partir as suas ovelhas, e em deixar ele mesmo o redil em que as encerra, é a mesma afinal confessada por um dos ministros que vamos surpreender reunidos no quarto quadro da peça: Jesus, reconhecido como o Cristo, “terá talvez razão; está talvez na verdade; mas a verdade absoluta não pertence às regiões inferiores”, pois “o mundo, para ser o que é, não pode viver da verdade”. “E este mundo, como ele é, pertence-nos a nós defendê-lo”, acrescentará terminantemente o político.

No primeiro quadro, o pároco de aldeia, tendo embora reconhecido no pobre soberbo a pessoa de Cristo, e não podendo ignorar que neste é que está a verdade, resigna-se, porém, a defender o seu pequeno mundo, confinado aos horizontes estreitos da sua paróquia, de forma a preservar a parcela de poder que esta lhe confere – ainda que, com isso, possa conscientemente perder a sua alma. De igual modo, no quarto quadro, o chefe dos ministros, reconhecendo tratar-se – “com certeza!” – de Jesus Cristo, afirma, porém, a necessidade da sua eliminação: “Meus senhores, a verdade é esta: nós não podemos com o que Ele quer. De toda a maneira, temos de nos arriscar, sabendo mesmo que perdemos a nossa alma”.

Como se acabou de ver, no fundo, nada separa a Igreja, representada por um dos seus provincianos ministros, dos políticos que, em Lisboa, formam o ministério. A atitude do reitor no primeiro quadro da peça pode bem ser ilustrada pela afirmação desesperada de um dos políticos da capital: “Não. Temos de defender o mundo que criámos, temos de o defender até contra Deus!”. Inarredável, topamos sempre com o mesmo obstáculo: a mensagem de Cristo é sobre-humana.

3. Radicado embora em premissas diferentes das conclusões a que, mais tarde, acabei por chegar em O Anjo e a Sombra – Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa, considerou António Cândido Franco ser o Regresso ao Paraíso o livro de Pascoaes “que melhor age, pelo menos ao nível dos valores soteriológicos, com o publicado em 1927” (A Literatura de Teixeira de Pascoaes, p. 369). A asserção parece-me justíssima e, na ligação que estabelece, permite acentuar a vertente de crítica ao catolicismo romano que esta peça escrita a quatro mãos verdadeiramente contém.

Perigoso será deitarmo-nos a adivinhar qual o significado encerrado na circunstância de, em toda a peça de Brandão e Pascoaes, o Diabo apenas se manifestar no quinto quadro, justamente passado na catedral, e em cujo final Jesus será entregue aos soldados, que entram na igreja para o prenderem. É na casa do Senhor que Satã, posto à solta, dá largas às suas palavras, numa sucessão de cenas em que, se exceptuarmos uma fala estranhamente desgarrada e anódina, não se vislumbra a presença de qualquer sacerdote! Para tanto, o Diabo, figurado numa escultura de altar, desenrosca-se previamente dos pés de São Miguel e vem para junto de Jesus Cristo, precipitando uma sequência de estranhos diálogos, ora bizarros, ora fecundos.

Retomando a pista facultada por António Cândido Franco, curioso será notar que a harmonia vislumbrada no Regresso ao Paraíso – no poema de 1912, o triunfo do Deus Infante mais não é do que a vitória do Arcanjo da Saudade, Metraton, ou Mikäel, sobre o tenebroso Samaël – nos surge agora subitamente quebrada no Jesus Cristo em Lisboa, tão certo é o Diabo deixar de estar sob o jugo do Arcanjo São Miguel. Na leitura cabalística e paraclética que propus em O Anjo e a Sombra, não me limitei a ver nesta harmonização dos contrários a superação sefirótica do dualismo entre o bem e o mal. Integrei-a numa interpretação que desoculta no poema uma representação alegórica do advento da Idade do Espírito Santo, num quadro de referências em que, na esteira de Henry Corbin, Álvaro Ribeiro ou António Telmo, o esoterismo cristão de Dante e seus sequazes nos leva a alcançar surpreendentes conclusões. Uma delas, evocando A Divina Comédia e o arrojo hermenêutico de Gabriel Rosseti, permite descobrir a Igreja de Roma simbolizada no Inferno engendrado por Pascoaes. Dito isto, o leitor saberá somar dois mais dois.

4. Em rigor, o Jesus Cristo em Lisboa não pode ser interpretado à margem do D. Carlos, o outro livro dramático que Pascoaes assinou, e que, de algum modo, lhe é contemporâneo (concluído em 1919, foi publicado em 1925). As coincidências estrutivas que os irmanam são surpreendentes: um regicídio e um deicídio, ambos tendo por palco o Terreiro do Paço, símbolo do nefasto iluminismo pombalino.

Emergindo no estertor da Primeira República, e, portanto, numa época de arrependimento e desilusão, estas duas peças oferecem o contraponto a esse superior díptico formado pelo Marános e pelo Regresso ao Paraíso, com que, na hora luminosa do entusiasmo renascentista, Pascoaes, calibrando o trilho escatológico pela gnose da Saudade, pretendia vincular a sorte do mundo ao destino messiânico da pátria. A esta luz, o Jesus Cristo em Lisboa e o D. Carlos são obras de síntese, que, pela mediação dos longos poemas míticos de 1911 e 1912, não deixam de reflectir matricialmente o deicídio aflorado n'A Velhice do Padre Eterno e o regicídio implícito na Pátria e nos poemas menores (A Marcha do Ódio; Finis Patriae) que lhe são adjacentes. A diferença está toda nisto: a mocidade paraclética do Deus Infante, que nasce no Marános para, no Regresso ao Paraíso, viver da morte de Jeová, não obsta à conversão católica (se não lograda, ao menos desejada) de Junqueiro, sugerida no quinto quadro da peça que Pascoaes compôs com Brandão. De igual sorte, o criacionismo saudosista do Marános nada pôde contra o remorso de um vate que, como nenhum outro, experimentou na metáfora assassina o poder desmedido da palavra, para aqui retomarmos a feliz expressão de António Cândido Franco. Bem se compreende que houvesse de ser um outro poeta a remir-lhe a culpa. Por isso, e para isso, compôs Pascoaes o D. Carlos, um livro terrível e penitente, que nos ajuda a compreender por que não pode a condição portuguesa ser separada do destino da humanidade. Claro que estas e outras relações não cabem num escrito desta natureza, antes pressupõem um estudo bem mais alongado. O facto de me encontrar, presentemente, a urdi-lo ditou a extensão deste artigo, levando-o para além dos limites reconhecíveis a uma simples recensão.

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