sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Pretextos (6)

Elogio da dúvida

Pedro Martins

Lê-se no Diário de Notícias de hoje que “o petróleo barato acabou”. Trata-se de uma opinião, não de uma notícia. As opiniões produzem, por natureza, um efeito calmante em quem as ouve ou em quem as lê. O positivismo sempre teve a virtude de recusar sofísticas: prefere o facto, o que está feito.

Mas a opinião do jornal é a opinião de um jornalista, imerso em notícias. Um dia, porventura não muito distante, as notícias poderão ser diferentes. Por exemplo: “o petróleo acabou”. Por enquanto, e segundo o nosso plumitivo, os áugures da ciência do mando entrevêem uma quebra irremediável na produção da substância, alcançado que foi o pico da extracção do crude. E o jornalista acrescenta: “a partir daí podem imaginar-se todos os perigos para a civilização mundial como a conhecemos hoje – toda baseada no petróleo – em guerra por um escasso bem essencial”.

Ao fazer cair o pano sobre o seu São Paulo, Pascoaes, confessadamente, mal pode esperar por esses dias do fim, que serão também os de um outro princípio: “Esta civilização americana depende de materiais esgotáveis ou em quantidade limitada. A fábrica, esse templo moderno, há-de ser destruída, como o templo de Artemisa, em Éfeso, e o de Vénus, em Pafos. Templo quer dizer túmulo, casa dos mortos, que os mortos foram os primeiros deuses. Foram eles que dirigiram, para além do mundo, a atenção dos vivos. Destruída a fábrica pagã, teremos a igreja de Cristo, a confraria dos irmãos, o convívio universal e amoroso”.

Diferentemente do jornalista, não teve o poeta de esperar pelas notícias. A lucidez dos vates pode sempre ser explicada, mas quase nunca é compreendida. Diferentemente do jornalista, Pascoaes não lamentava perder a civilização em que vivia, afinal em tudo idêntica à “civilização mundial como a conhecemos hoje”. Ainda numa das derradeiras páginas do São Paulo, o escritor descreve-a pelo seguinte modo: “Nesta orgia industrial moderna, paródia em ferro e vapor, da orgia pagã, o homem está morto ou isolado do seu espírito. Existe, mas não vive. Existe a duzentos quilómetros à hora, mas com a vida parada, dentro dele. Vida inerte numa existência delirante. Seduzido pelo ruído e movimento, as duas faces desta civilização americana ou neo-neroniana, integrou-se num sistema mecânico industrial, e é simplesmente uma engrenagem. O ideal da ciência é a morte absoluta; a morte da alma e a do corpo: ateísmo e milinite”.

Um dia, já no Inverno da vida do mestre, António Telmo e Rafael Monteiro foram visitar Almada Negreiros. Em dado momento da conversa, quando se falava da velha Sesimbra e da moderna praga do turismo, o pintor elogiou superlativamente a beleza natural das paisagens que rodeiam a vila piscatória: “Sesimbra é tão bela que nem uma bomba atómica a pode destruir”. Irreverente, Rafael Monteiro apressou-se a acrescentar: “Que venha então a bomba atómica, para se acabar de vez com o turismo!”. Tal como Pascoaes, poeta que lia e admirava, Rafael ansiava por um novo começo. Nada sabemos desse recomeço, o que não pode deixar de nos angustiar. Mas é também a dúvida que sustenta a esperança.

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